Em um de seus comentários atenuando a pandemia no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) questionou, em março, o motivo da lotação de leitos de UTI e disse que “parece que só se morre de covid” no país. Números do OpenDatasus, do Ministério da Saúde, mostram que a covid-19, de fato, roubou a cena entre as causas de óbito no Brasil. Mortes por outras doenças – como infarto, diabetes e hipertensão -, porém, continuaram presentes, e especialistas alertam: sem acesso adequado das pessoas a diagnóstico e tratamento em meio à pandemia descontrolada, elas também vão subir.
Um ranking das dez doenças que mais levaram a óbito no Brasil entre 2016 e 2020 (períodos de janeiro a julho) traz 11 causas diferentes. “Até 2020, temos as mesmas dez doenças, apenas alterando um pouco as posições”, observa André Santos, sócio da consultoria ATsaúde, que fez o levantamento a pedido do Valor. A análise, a partir da Classificação Internacional de Doenças (CID), vai somente até julho porque é o período com dados completos disponíveis para 2020, explica ele.
Desde 2016, o ranking era liderado por “infarto agudo do miocárdio”, com cerca de 55 mil mortes na primeira metade de cada ano. Em 2020, porém, passa a ocupar a primeira posição “doenças por vírus, de localização não especificada”, um reflexo claro da pandemia. Até então, essa CID nem aparecia no “top 10”. Na média de 2016 a 2019, seu registro caía 31%, mas, na primeira metade de 2020, explodiu, passando de 47 no ano anterior para 104.930 no seguinte.
A primeira vítima fatal da covid-19 no Brasil foi registrada em março de 2020. De lá para cá, o país soma 365.954 óbitos pela doença. O câncer que mais mata mulheres no Brasil, o de mama, vitima cerca de 17 mil por ano, segundo Rafael Kaliks, diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). “Só em um ano de pandemia, foram cerca de 270 mil pessoas mortas por covid-19. É mais de dez vezes o câncer que mais mata mulheres no país. Dá para ter ideia da dimensão”, reconhece. Partes das pessoas que morreram por covid-19, observa ele, poderiam ter morrido de outras causas.
Considerando as CIDs com mais óbitos nos primeiros semestres entre 2016 e 2019, sete delas apresentaram queda no mesmo período de 2020. As mortes por infarto agudo do miocárdio recuaram 10% em relação à média dos anos anteriores, para 49.660. O patamar, porém, é elevado, configurando ainda a segunda causa de óbitos. Movimento similar é observado em “diabetes mellitus não especificado”, que foi do terceiro lugar nos rankings anteriores para o quarto em 2020, mas com número até maior de vítimas – alta de 2% em 2020, ante a média de 2016 a 2019, superando 30 mil mortes.
O “acidente vascular cerebral [AVC] não especificado como hemorrágico ou isquêmico” também ficou em patamar próximo ao de anos anteriores, indo da sexta posição em 2019 para a sétima em 2020. Já as mortes por “hipertensão essencial (primária)” subiram 33% ante a média dos anos recentes, avançando para a sexta posição em 2020, com mais de 20 mil.
A partir de dados dos cartórios, a estimativa é que mortes por doenças cardiovasculares em geral tenham crescido 50% na pandemia, aponta José Francisco Kerr Saraiva, diretor de promoção de saúde cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e professor da PUC-Campinas. “Não eram mortes por infarto ou AVC, mas por causas inespecíficas”, observa ele, citando dificuldades e problemas de identificação quando as pessoas morrem em casa ou já chegam sem vida aos hospitais.
O levantamento da ATsaúde mostra que óbitos por “outras causas mal definidas e as não especificadas” subiram 58% na primeira metade de 2020, contra a média de 2016 a 2019, assumindo a terceira posição. Para Santos, da consultoria, isso também pode ter relação com a dificuldade inicial de identificar mortes por covid-19.
O novo vírus, aliás, “ bagunçou” o sistema de notificação de óbitos. Entre as principais quedas no grupo de doenças analisadas, estão “pneumonia por microorganismo não especificada” (-28% no primeiro semestre de 2020, ante a média de mortes de 2016 a 2019) e “outras doenças pulmonares obstrutivas crônicas” (-21%). “Isso pode ocorrer devido ao fato de esses pacientes estarem falecendo pela covid-19 ou ainda pela dificuldade de diferenciar essas doenças da covid para reportar”, diz Santos.
Independentemente da doença, especialistas observam que a pandemia atrapalhou diagnósticos e tratamentos. No início do ano, a Santa Casa de Porto Alegre, por exemplo, tinha 58 leitos de UTI para covid, mas, com a segunda onda, precisou aumentar para 124. “Tentamos ficar com, ao menos, 42 em outras áreas, para atender minimamente câncer, doenças cardiovasculares, neurológicas, mas é claro que repercutiu nesses pacientes”, diz o diretor Antonio Kalil. “Vai ter represamento grande de pacientes com essas doenças. Isso, certamente, vai levar a mais diagnósticos tardios e, provavelmente, a uma maior mortalidade.”
Fonte: Valor Econômico