O título deste breve artigo é propositalmente provocativo e decorre da curiosa movimentação por parte da advocacia em buscar amparo na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para fundamentar requerimentos de segredo de justiça.
Em que pese o louvável intuito de proteger os dados pessoais do cliente, sem descartar a boa-fé daqueles que veiculam tais requerimentos, deve-se coibir casos em que a real motivação seja acobertar do olhar e conhecimento públicos determinados fatos levados à tutela jurisdicional, ou mesmo resguardar interesses puramente particulares, consubstanciando evidente distorção da real função do instituto jurídico em comento. Por isso, acreditamos relevante estabelecer certas balizas interpretativas a respeito da LGPD e os casos efetivamente merecedores do segredo de Justiça.
Pelo princípio da publicidade dos atos processuais, garantia fundamental estampada no inciso LX do artigo 5º da Constituição Federal, extrai-se que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Vale ainda ressaltar que, visando a conferir máxima credibilidade para os atos praticados pelo Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal há tempos vem se posicionando com rigor pela transparência e publicidade dos atos processuais [1].
Tem-se, portanto, a publicidade como regra e o segredo é excepcional.
A discussão ganha novos contornos a partir do momento em que adicionamos à equação uma nova variável: o direito fundamental à proteção de dados pessoais [2]. Embora um dos fundamentos da LGPD seja justamente a autodeterminação informacional (artigo 2º, II) que, na doutrina do saudoso jurista italiano Stefano Rodotà decorre da necessidade de controle, pelo titular, quanto à circulação das informações que lhe dizem particular respeito, gerando uma espécie de tutela dinâmica, capaz de acompanhar os dados pessoais do indivíduo por onde quer que eles se encontrem, legitimando a tomada de medidas para sua efetiva proteção [3].
Assim, com o cenário devidamente aprontado, tem-se, de um lado, a regra da publicidade dos atos do processo e, com isso, a possibilidade de acesso por uma gama indeterminada de indivíduos aos dados pessoais [4], documentos particulares e demais informações que dizem respeito aos sujeitos processuais. De outro, encontra-se o direito à proteção de dados pessoais, nos termos da LGPD, e a pretensão de conferir sigilo ao processo.
Na busca de dar concretude ao mandamento constitucional estabelecido pelo artigo 5º, LV, o Código de Processo Civil apresenta os limites objetivos para a caracterização da necessidade de dar sigilo aos atos processuais, como se verifica nas hipóteses previstas nos incisos do artigo 189, que dependem da existência de: 1) interesse público ou social pelo segredo; 2) processos que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; 3) dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; e 4) processos que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.
Das quatro hipóteses acima, aquela que melhor reflete o argumento daqueles que fundamentam na LGPD a necessidade do sigilo processual, notoriamente, é a do inciso III, referente a dados que merecem proteção para preservação da intimidade de seu titular.
No entanto, é fundamental observar que a proteção de dados pessoais, como dito, é direito autônomo e, consequentemente, diverso da intimidade [5]. Aqui, a noção de intimidade não deve ser alargada para compreender todo e qualquer dado pessoal, ou seja, toda e qualquer “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”, conforme definição do artigo 5º, I, da LGPD.
Apesar da imanente dificuldade em conceituar e delimitar direitos da personalidade, como reconheceu Orlando Gomes [6], a intimidade referida pelo Código de Processo Civil (CPC) deve ser tida por sua definição clássica, bem colocada por Gilmar Mendes como “as conversações e os episódios ainda mais íntimos envolvendo relações familiares e de amizades mais próximas” [7].
Com efeito, o âmago da questão reside na existência de autorização da LGPD para a realização de atos de tratamento de dados pessoais no âmbito da atividade jurisdicional, bem como do exercício da advocacia ou do múnus público, no caso do Ministério Público. O permissivo se encontra previsto no artigo 7º, da LGPD, dispositivo que prescreve as hipóteses legais para o tratamento de dados pessoais.
A atuação dos tribunais pátrios encontra esteio no inciso III, que permite que a Administração Pública realize o tratamento de dados pessoais necessários à “execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres”, mais especificamente a política judiciária que abrange toda a atividade jurisdicional. Quanto à advocacia e o Parquet, tem-se a hipótese prevista no inciso VI como aquela mais adequada a garantir o acesso aos dados pessoais de processos públicos, pois decorrem das prerrogativas ligadas ao exercício regular de direitos em processo judicial [8].
Nesse sentido, como salientou Ricardo Villas Bôas Cueva, ministro do Superior Tribunal de Justiça, “a legislação de proteção de dados não se destina, nem poderia, a interferir, limitar ou retardar a atividade jurisdicional” e, tampouco, prejudicar ou restringir o direito de defesa, em seu sentido lato [9].
Não se pode perder de vista que a LGPD tem por objetivo, na forma de seu artigo 1º, a proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, assim como o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, motivo pelo qual entendemos que tal ponderação deve ser feita por meio de uma análise casuística pelo magistrado, que deverá emitir seu juízo de valor a respeito dos riscos quanto à violação de direitos fundamentais do titular, suficientes para sobrepor os interesse das coletividade, que justificam a publicidade dos atos do processo.
Apenas após a ponderação entre esses direitos — direito difuso à publicidade e direito individual à proteção de dados pessoais — será possível identificar qual deles deverá prevalecer no caso concreto [10].
Portanto, deve-se vislumbrar riscos concretos ao indivíduo que, por meio da exposição de seus dados no processo efetivamente culminem em prejuízos à sua esfera íntima. Certamente, não é qualquer caso em que riscos acentuados desta natureza estarão configurados. Ademais, inexiste óbice para que, caso reste comprovado o receio iminente ou a ocorrência de violação do direito à intimidade, a necessidade de sigilo dos atos processuais não venha a ser revista a qualquer tempo ou grau de jurisdição.
Pelo exposto, a título de conclusão quanto à provocação inicial, não há contrassenso entre o princípio constitucional que estabelece como regra a publicidade dos atos processuais (artigo 5º, LX, CRFB), as normas do Código de Processo Civil que delimitam as hipóteses de sigilo dos atos processuais (em especial o artigo 189, CPC) e as disposições da LGPD.
Há, sim, de se procurar estabelecer o diálogo entre essas diferentes fontes normativas, a fim de extrair uma interpretação sistêmica que prestigie a proteção de dados pessoais nos casos em que efetivamente exista a necessidade de manter os atos processuais em segredo, nas hipóteses previstas no Código de Processo Civil, não servido a LGPD, de rigor, como meio para alargamento das hipóteses legais já existentes, sob pena de retrocedermos as conquistas obtidas quanto à efetivação do princípio da publicidade e transparência na atuação jurisdicional, em afronta à Constituição Federal.
Por fim, visando a trazer algum contributo minimamente propositivo à presente discussão, acredita este autor que um primeiro passo importante para a melhor acomodação da problemática seria a celebração de um acordo de cooperação técnica entre a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [11].
Nesse sentido, em comentários ao artigo 194 do Código de Processo Civil, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery recomendam que “(…) cada Tribunal deverá ter o cuidado de não expor informações desnecessárias e que possam comprometer/constranger a pessoa, mesmo que o processo não siga em segredo de justiça” [12].
Tal orientação corrobora a presente conclusão, uma vez que permitiria, que as autoridades competentes, em ambiente apropriado, melhor estabeleçam o referido diálogo das fontes entre CPC e LGPD na rotina dos tribunais pátrios, dando maior efetividade ao disposto no artigo 194, do CPC [13], sobretudo no que concerne a mecanismos de pseudonimização de dados pessoais veiculados em processos e peças processuais, de modo a limitar o acesso de terceiros (ou seja, atores externos à relação inter partes) quanto a dados pessoais, especialmente aqueles considerados sensíveis, nos termos do artigo 5º, II, da LGPD.
Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.389/DF. Relatora ministra Rosa Weber. Disponível em: https://bit.ly/3d7jv6r; Acesso em 11 abr. 2021.
CUEVA, Ricardo Villas Bôas. A incidência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais nas atividades do Poder Judiciário. In DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; CUEVA; Ricardo Villas Bôas (coord.). Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) : a caminho da efetividade: contribuições para a implementação da LGPD. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
NERY JR. Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 18ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
ZANETTI DE OLIVEIRA, Dânton Hilário; FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra. A proteção de dados pessoais como direito e garantia fundamental na Constituição da República de 1988. In: Direitos fundamentais e a era tecnológica – Law Experience 2020. FERRAZ, Miriam Olivia Knopik; VETTORAZI, Karlo Messa (org.). 1. Ed. Curitiba: FAE/Bom Jesus. 2020, p. 30-50. ISBN nº 978-65-89337-00-3. Disponível em: https://bit.ly/3anVlnp; Acesso em: 11 abr. 2021
Fonte: Conjur