Tema da redação do Enem, os brasileiros sem documentos, como Maria da Conceição, protagonizam dramas e, por vezes, tragédias por não terem certidão de nascimento
Na sexta-feira, 14 de outubro de 2016, a diarista Maria da Conceição era das primeiras na fila do pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na Praça Onze, no Centro do Rio. Aguardava atendimento no ônibus da Justiça Itinerante, serviço público e gratuito especializado na emissão de certidões de nascimento, ligado ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Eu já sabia o motivo que levara Maria até ali. Mesmo assim perguntei. E ela, mais do que me contar, me mostrou: do seu seio esquerdo projetava-se um caroço do tamanho de uma laranja. Na emergência do hospital público em que fora atendida, avisaram que não poderiam operá-la. O motivo? Maria não tinha documentos.
Conheci Maria quando eu acompanhava o trabalho do ônibus para minha pesquisa de doutorado no CPDOC, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas. Conversei longamente com a mulher magra e loura, de óculos, analfabeta, que aos 52 anos aparentava muito mais. Ela me contou que viera de Pernambuco para o Rio quando jovem e não tinha nenhum documento, ou pelo menos não sabia da existência deles. Não fora registrada e não tinha certidão de nascimento. Sem esse documento, nunca conseguira RG, CPF, carteira de trabalho nem título de eleitor. Sempre vivera daquele jeito, sem trabalho formal nem conta bancária e com um celular comprado em nome de algum parente. “Sou uma pessoa que não existe”, resumiu.
Após uma vida inteira, mais dois meses – dois meses foi o tempo que levou desde aquele dia na fila do ônibus da Justiça itinerante –, Maria da Conceição obteve seu registro de nascimento. Tirou os outros documentos e conseguiu fazer tratamento contra o câncer em hospital público. Documentada, obteve um benefício destinado a pessoas em situação de extrema pobreza. Em 2018, votou pela primeira vez. Voltou ao ônibus da Praça Onze levando outros indocumentados. “Pra mim todo o ouro do mundo não tem o valor desse documento”, dizia, referindo-se à certidão de nascimento.
Contei as histórias de Maria da Conceição e de muitos outros brasileiros adultos ao realizar uma pesquisa etnográfica que se transformou em tese de doutorado e, depois, no livro Invisíveis: Uma Etnografia sobre Brasileiros sem Documento, lançado este ano pela Editora FGV. Não pude deixar de me lembrar de Maria e de tantos outros indocumentados quando vi o tema da redação do Enem, “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. Um trecho da tese foi incluído entre os textos motivadores, que apresentam aos candidatos informações sobre o assunto a ser abordado em trinta linhas.
Numa redação sobre registro civil, invisibilidade e cidadania, seria útil escrever que quem não foi registrado não tem certidão de nascimento e, com isso, não pode ter nenhum outro documento. Não tem carteira de trabalho, não vota, não pode se inscrever para receber benefícios sociais, tem acesso limitado a políticas de saúde e educação. Ao morrer, é enterrado em covas sem identificação. A pessoa passa pela vida sem que sua existência fique registrada.
Os candidatos do Enem não teriam como saber, mas a relação entre documento e cidadania abordada na redação está presente em estudos acadêmicos brasileiros como os realizados por Wanderley Guilherme dos Santos, Mariza Peirano, Roberto DaMatta e Leticia Ferreira. Mais recentemente, Tula Brasileiro, Loanna Netto e Raquel Chrispino também abordaram o tema.
A mesma chave documento/cidadania se repetiu nos relatos das pessoas indocumentadas que conheci durante os quase três anos de pesquisa de campo. Quando perguntei a elas como é viver sem documentos, percebi que tinham vergonha de sua condição. Sentiam-se culpadas por não terem documentos e eram constantemente submetidas a julgamentos morais por isso. Rita escondeu do namorado com quem se relacionava havia mais de dois anos sua condição de indocumentada. “Dá muita vergonha”, dizia.
Percebi também que os indocumentados não se viam como sujeitos de direitos. Mais que isso, falavam de si como não pessoas. “A pessoa quando não se registra fica como um ninguém, a pessoa não existe”, me disse Carlos, 22 anos. “Eu me sinto como um nada, a gente não existe”, me relatou Fátima, 57 anos, para quem a pessoa sem documento tem “uma vida de improviso”. Ou, como me disse Maria, na frase que jamais esquecerei: “Sou uma pessoa que não existe.” Por isso falavam de si como invisíveis diante do Estado, cidadãos de segunda classe em seu próprio país. Na tese e no livro, optei por identificar todos os indocumentados, com a concordância deles, apenas pelo prenome.
As vidas de Maria, Carlos, Fátima, Cristiane, Rita e tantos outros que conheci teriam sido mais fáceis se, até chegar ao ônibus, eles não tivessem sido submetidos ao que a pesquisa me apresentou como “síndrome do balcão”. Ouvi a expressão pela primeira vez de Erika Santos, então coordenadora do comitê de combate ao sub-registro em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Nas palavras dela: “Cada vez que alguém se dirige a um balcão do serviço público para tirar o registro de nascimento, ouve que não é ali. Então a busca recomeça. É a síndrome do balcão.” Graças à síndrome do balcão e às estruturas burocráticas paralisadas e paralisantes, o indocumentado é obrigado a percorrer vários órgãos, numa espera não de semanas ou meses, mas anos. Resumindo, o Estado lhe nega um direito (a certidão de nascimento, cuja primeira via é gratuita por lei desde 1997); porque a pessoa não tem esse direito, a ela são negados outros direitos, como carteira de identidade, voto e emprego formal. É excluída do mundo dos direitos – e ainda se sente culpada por isso.
Acompanho os temas do registro civil e da exclusão documental brasileira há quase vinte anos, primeiro como repórter, depois como pesquisadora. Para quem gosta de números, aqui vão eles: o Brasil reduziu significativamente o sub-registro de crianças, que caiu de 20,3% em 2002 para 2,1% em 2019. Estudos internacionais mostram que esse resultado se deve em parte à implementação de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, que passaram a exigir que todos os beneficiários fossem documentados. Em 2007, durante o governo Lula, foi instaurado o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica, e comitês se espalharam pelo Brasil. Mesmo assim, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015, os últimos disponíveis sobre o assunto, contabilizam 3 milhões de brasileiros de variadas idades sem certidão de nascimento – e, portanto, sem nenhum outro documento.
Costumo dizer que a exclusão documental brasileira é um tema transversal, que atravessa várias de nossas exclusões. Dialoga com a profunda desigualdade social brasileira em suas múltiplas facetas, de raça, gênero, classe e região. O indocumentado típico é alguém pobre ou muito pobre e muitas vezes negro. A exclusão documental também se liga ao abandono paterno, ao racismo estrutural – conheci uma moça que não fora registrada porque seu pai a achava “muito preta” – e ao machismo – outra me disse que o pai só registrava os filhos homens, por entender que “mulher não precisa de registro”.
Para além do problema de quem nunca foi registrado, há outros, como a chamada segunda via inacessível: uma vez que perde a primeira via de seu documento, em enchente, incêndio ou mudança, o brasileiro pobre se vê diante de exigências e custos incontornáveis para conseguir uma segunda. Quando não consegue, acaba se tornando, na prática, equiparado à condição de indocumentado. A organização do sistema de documentação no Brasil, pouco interligado e com responsabilidades distintas entre as diferentes esferas de poder encarregadas de emitir documentos, dificulta ainda mais a obtenção dessa segunda via e consolida a exclusão documental brasileira.
Coordenadora do programa de Erradicação do Sub-Registro do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a juíza Raquel Chrispino há quinze anos trabalha na área. Contou-me que muitas vezes presenciou certidões de nascimento serem emitidas em papéis distintos: um bonito, colorido, nobre e timbrado, para quem pagava; e outro de má qualidade, feio e pouco legível, para quem não podia pagar. Era a expressão, concretizada em papel, da cidadania de segunda classe que o Brasil costuma oferecer ao pobre. Essa diferença foi proibida em 2009, e as certidões foram padronizadas, passando a ter a mesma aparência. Em sua dissertação de mestrado, defendida este mês na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, ela aponta alguns caminhos para ajudar a reduzir a exclusão documental. Entre eles, reforçar a prática de registrar os bebês nos hospitais, valorizando as chamadas unidades interligadas, postos ligados aos cartórios. A especialista defende uma integração melhor do trabalho de registro civil com os sistemas de saúde e assistência social; ação junto ao sistema educacional, para que as escolas possam auxiliar na localização de crianças e adolescentes indocumentados; melhor comunicação entre os cartórios e integração entre os sistemas de registro civil (feito pelos cartórios) e a identidade civil (a emissão dos RGs, feita pelos estados), tanto nas bases de dados quanto nos serviços de atendimento à população.
Enquanto existirem no Brasil pessoas sem documentos, seguiremos aceitando oferecer a elas uma cidadania de segunda classe. Aceitaremos a contínua negação de direitos imposta a esses brasileiros de cuja existência não fica registro, e que quando morrem vão para a vala comum.
Falei com Maria da Conceição pela última vez em 8 de janeiro de 2021, quando o câncer consumia suas últimas forças. Seguia lembrando o dia em que recebeu a certidão de nascimento: “Foi o dia em que eu virei gente.” Morreu dois meses depois. Em seu túmulo estão escritos o nome completo e as datas de nascimento e morte.
Fonte: Revista Piauí