GaúchaZH – “Era um pedaço de papel que dizia que eu existia”, conta homem transgênero que alterou nome e gênero nos documentos

Cartórios gaúchos realizaram mais de 600 retificações do tipo desde 2018, quando a autorização entrou em vigor no Brasil 

 

— Não costumo chorar, mas lembro que quando peguei a minha certidão foi uma emoção muito grande. Era um pedaço de papel, mas um pedaço de papel que dizia que eu existia.

 

A declaração resume o sentimento de João Vicente Marcelino Barbosa, 27 anos, ao ver pela primeira vez sua certidão de nascimento com o novo nome. Essa mesma felicidade se fez presente quando o estudante de jornalismo buscou a carteira de identidade retificada, no final de 2021. Foram dois momentos marcantes em seu processo de transição como homem transgênero.

 

— Pensei em quantas pessoas morreram para que eu pudesse viver aquele momento. E é um direito básico, o primeiro direito que temos na vida. Depois, fiquei mostrando minha identidade para todas as coisas, até onde não precisava — comenta.

 

Morador de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre, João relata que se entendeu como um homem trans no início da pandemia de coronavírus, mas destaca que sempre teve disforia de gênero. Desde a infância, tinha certeza de que era um menino e não entendia por que as pessoas lhe viam de outra forma, colocando-o sempre no grupo das meninas nas divisões.

Lembra que, uma vez, disse para o pai que queria ser menino. Aos seis anos, chegou a cortar o cabelo bem curtinho, porque entendia que aquela era a maior diferença entre mulheres e homens. Durante todo o Ensino Fundamental, sofreu muito bullying. Já no Ensino Médio, tentou se adequar e ficou “mais feminino”.

 

João conta que sempre gostou de se relacionar com mulheres, mas não sabia da existência de homens trans até entrar na faculdade, já adulto:

 

— Descobri um influenciador trans, fui pesquisando, fiz trocentas matérias sobre transgeneridade e conheci meninos trans. Óbvio que quando entrevistamos, sentimos empatia, mas eu sentia mais do que isso. Me via naquelas histórias. Quando chegou a pandemia, pensávamos que todos iriam morrer, daí pensei: “vou viver como acho que tenho que viver”.

 

De acordo com o estudante, o início do processo foi difícil, principalmente porque sua depressão agravou em 2020. Na época, não sabia se ia querer passar pela hormonização ou por cirurgias, mas decidiu que queria ser reconhecido como homem. No âmbito familiar, em um primeiro momento, também houve certa dificuldade de aceitação, devido à falta de conhecimento. Entretanto, hoje em dia, tanto os pais quanto os dois irmãos mais velhos lidam bem com a transição — inclusive foi o pai quem o levou para fazer a troca de nome e gênero dos documentos e incentivou a cirurgia de mastectomia, para retirada da glândula mamária, que João fez neste ano.

 

O novo nome, explica, foi o que a mãe havia escolhido quando descobriu a gravidez. Além disso, o avô paterno também se chama João.

 

— Pesquisei sobre a troca de nome e fui mais instruído, mas quando cheguei para solicitar os funcionários não sabiam me dizer direito o que eu tinha que levar, porque não era uma situação muito corriqueira. Mas, no meu caso, não foi muito demorado, porque nasci e morei no mesmo lugar a vida toda. Levou uma semana para fazerem a certidão de nascimento nova e depois já fiz a carteira de identidade, com nome e gênero retificados — conta.

Mudança foi regulamentada no Brasil em 2018

 

A autorização para mudanças de nome e gênero de pessoas trans em cartórios de registro civil foi regulamentada no Brasil em 2018, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A medida entrou em vigor em junho do mesmo ano e, desde então, os cartórios gaúchos realizaram um total de 618 alterações, sem a necessidade de processo judicial e nem comprovação de cirurgia de redesignação sexual.

 

Em 2018, conforme dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen-RS), não houve mudanças. Já em 2019, foram 95. No ano seguinte, o número caiu para 67, mas quase triplicou em 2021 — 152. O índice cresceu ainda mais no ano passado, quando os cartórios gaúchos registraram 194 alterações.

Em 2023, somente até segunda-feira (26), foram 110 atos do tipo no Rio Grande do Sul, sendo que 10 pessoas optaram por trocar apenas o nome, mantendo o gênero.

Comparando o primeiro ano de vigência (junho de 2018 a maio de 2019), quando foram contabilizadas 23 alterações, e o último (junho de 2022 a maio de 2023), quando foram 212 mudanças, há um aumento de 821%.

 

De acordo com a Arpen-RS, entre as mudanças de gênero, prevalecem aquelas para feminino. No último ano da regulamentação (junho de 2022 a maio de 2023), foram 92 alterações de masculino para feminino, 101 de feminino para masculino e em 19 casos não houve mudança de gênero.

 

Como fazer?

Para realizar o processo de alteração de gênero em nome nos cartórios de registro civil é necessário a apresentação de todos os documentos pessoais, comprovante de endereço e as certidões dos distribuidores cíveis, criminais estaduais e federais do local de residência dos últimos cinco anos. Também é necessário apresentar certidões de execução criminal estadual e federal, dos Tabelionatos de Protesto e da Justiça do Trabalho. Na sequência, o oficial de registro deve realizar uma entrevista com o interessado.

 

A emissão dos demais documentos devem ser solicitadas diretamente ao órgão competente por sua emissão. Não há necessidade de apresentação de laudos médicos e nem é preciso passar por avaliação de médico ou psicólogo. Outras orientações podem ser encontradas na cartilha de orientações desenvolvida pela a Arpen-RS.

 

Fonte: GaúchaZH