Além da certeza que morreremos, inescapável é a sina de escreverem seu nome errado
“Nome completo?”, pergunta a moça com a ficha do crediário. O farmacêutico com o remédio. A senhorinha com o cartão da biblioteca. O entregador com a caixa do Mercado Livre. Sempre olhos diferentes me encarando, à espera da resposta. Enquanto eu, calma por fora mas com vontade de erguer os braços e gritar POR QUÊ, MEU DEUS???, toda vez respondo com outra pergunta. “Quer que soletre?”
Ao longo da vida, aprendi o seguinte: quem tem um nome há de vê-lo esculhambado. E, antes que prossigamos, preciso expor meu caso. Sim, havia opções simples. Maria. Renata. Fernanda. No entanto, mamãe decidiu ousar. “Que tal Beatrice?” E assim ficou decidido, para meu desassossego. Desde que nasci, posto que a enfermeira disse “Beatrize”. Uma tia meio surda entendeu “Berenice”. E o escrivão quase registrou “Bruna Louise”. Restou-me, então, ser Bia. “O quê? Lia? Mia? Maria Pia?”
Verdade seja dita, a culpa maior foi do meu pai. Enquanto “Tácito”, ele não podia ter aprontado essa comigo. Uma vida inteira sendo chamado de Tarso, Epitácio, Tarcísio, Eustáquio, Anastácio. Exausto, passou a pedir que se referissem a ele pelo sobrenome. “Guarda na memória: é SANTIAGO, que nem a capital.”.E virou logo “Seu Assunção”.
Nos tempos do Orkut —assim batizado por causa do turco que criou a rede social—, fui buscar consolo, mas também oferecer apoio a gente inominável como eu. Criei a comunidade Ninguém Escreve Meu Nome Certo, achando que seria um espaço de acolhimento para Wellingtons, Catherines, Kizzys, Warllens, Tiellys, Narjaras e Christovans. Nisso, milhares de Nikolas, Daianas, Tarcianas e Gutenbergs se chegaram. E, quando a lotação já passava dos milhões, uma surpresa: tinha até João. “Acham que só vocês têm problema? Eu não sou José!”
Não adianta falar devagar, com toda a paciência do mundo. Ou mostrar certidão de nascimento autenticada. Ainda que seja num recado escrito com batom em espelho de motel, alguém sempre vai errar.
Tatianes serão Tatianas. Leandros e Leonardos viverão unidos, numa dupla confusão. “Marcela com um único L? Como ousa?” “Gabryela sem Y? Tá maluca.” “É Diego ou Diogo? Se decide aí, mermão.” Nem o cantor Prince teve paz. Quando virou apenas um símbolo, o botavam de cabeça para baixo.
Enfim, são pequenas tragédias diárias. Shakespearianas, eu diria. Como no famoso diálogo entre os amantes de Verona. “Romeu, rejeita teu nome.” E facilita nossa vida. Ou é Cauã ou é Enzo.
*Bia Braune, jornalista e roteirista, é autora do livro “Almanaque da TV”. Escreve para a Rede Globo.
Fonte: Folha de S.Paulo