Figurando como mais uma conquista para o movimento LGBTQIA+, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou o Provimento nº 122/2021, que modificou as possibilidades para a designação do sexo no registro civil pessoas naturais e na declaração de óbito. Desde 12 de setembro, é possível constar, na certidão de nascimento ou óbito, além de “sexo feminino” e “sexo masculino”, a opção “sexo ignorado”.
Essa inovação é crucial para a inclusão e garantia de direitos das pessoas intersexuais, que são aquelas que nascem com alguma anatomia reprodutiva, sexual ou cromossômica, que não se encaixa nos padrões binários de sexo masculino ou feminino.
Antes da edição do provimento, por mais que tivesse sido verificada variação anatômica das características genitais, para que fosse elaborado o registro era necessário atrelar uma designação sexual, não podendo ocorrer omissão. Assim, o responsável procedia com a escolha entre sexo masculino ou feminino, ou era indispensável ingressar com processo judicial para assegurar o direito à cidadania, tendo em vista que uma criança sem registro de nascimento fica sem acesso aos direitos fundamentais.
Assim, após o nascimento do bebê, as equipes médicas passam a buscar, clinicamente, as características para associar o infante a um sexo, feminino ou masculino, muitas vezes submetendo-os a cirurgias de “adequação” sexual, demonstrando uma ultrapassada fixação nos padrões de construção social do sexo binário, relacionando órgãos a um determinado sexo e esse sexo a um determinado gênero. Logo, depois do nascimento, o pacto social firmado em um padrão binário repercute no desrespeito à identidade que se poderia assumir, conduzindo as crianças a “caixinhas de gênero”, que trazem, atreladas a si, expectativas sociais.
É preciso estabelecer, portanto, a distinção entre gênero e sexo, este entendido como as categorias da biologia que são inatas ao indivíduo, ligadas à genitália, aos hormônios e aos cromossomos, ao passo em que aquele está relacionado aos papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres e como essas pessoas se identificam. Esses conceitos, por sua vez, se entrelaçam, tendo em vista a determinação do sexo impacta na associação de papéis de gênero determinados.
Os responsáveis, no momento do registro de nascimento, ao prosseguir com a escolha por um dos sexos disponíveis, atrelavam às crianças, também, estigmas sociais que nem sempre condizia com a identidade que a pessoa intersexual irá assumir. Via-se, assim, uma imposição de uma identidade de gênero binária a corpos que são biologicamente não binários.
Atrela-se, então, à criação da criança uma binariedade compulsória que ele sequer faz parte, negando, dessa maneira, sua individualidade e atribuindo um local que ela precisa se encaixar, ou será vista como “estranha” no âmbito societário. Além disso, a atribuição compulsória do sexo, após o nascimento, pelos responsáveis, pode gerar repercussões de ordem legal, considerando que, no futuro, o indivíduo intersexual poderá recorrer ao Judiciário para alterações de nome e sexo.
Nesse sentido, imputar, com fundamentos médicos, uma categoria sexual, tenha sido ele objeto de cirurgias que modificam suas características ou não, vai de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois, ao cidadão que não se encaixa nos padrões pré-determinados, não é viabilizada a identificação com quaisquer dos gêneros existentes, caracterizando uma violência simbólica. Assim, as pessoas intersexuais são tolhidas do reconhecimento identitário e de seus direitos fundamentais para que possam ser adequadas a um padrão social.
O Provimento 122/2021 do CNJ inova, mesmo que de modo singelo, a posição do Direito quanto à situação. Logo, os intersexuais passam, após esse provimento, a serem respeitados desde o seu nascimento, sem que haja necessidade de negar a sua individualidade e se encaixar em um padrão binário para que possam ter seus direitos garantidos.
A inclusão de “sexo ignorado” no campo destinado ao sexo no registro civil pessoas naturais e na declaração de óbito parece algo simples, mas, na verdade, é um avanço considerável no tocante ao direito à identidade dos cidadãos intersexuais, aos quais é possibilitado o entendimento de suas particularidades.
Assim, o intersexual poderá, a qualquer tempo, realizar a opção de designação de sexo, em qualquer cartório de registro civil, sem a necessidade de autorização judicial, de comprovação de cirurgia sexual e tratamento hormonal ou apresentação de laudo médico ou psicológico.
*Elis Maria Peixoto é integrante da área de Direito Administrativo do escritório Martorelli Advogados.
*Flávio Kummer H. Filho é advogado da área de Direito Administrativo do escritório Martorelli Advogados.
Fonte: ConJur