Conjur – Artigo – A não incidência do ITCMD sobre heranças e doações recebidas do exterior

Por Joanna Oliveira Resende Barbosa, Izabel Guedes Nazarian e Natalia Zimmermann

Um dos temas mais importantes para área de Wealth Planning em 2021, talvez o mais relevante do ano, foi o aguardado julgamento do Recurso Extraordinário n° 851.108 SP [1], de relatoria do ilustre ministro Dias Toffoli, no qual se discutiu a competência dos estados para regular e cobrar o ITCMD sobre heranças e doações recebidas do exterior, sem a prévia regulamentação da matéria por meio da edição de lei complementar pelo Congresso Nacional.
A relevância do tema se deve à situação cada vez mais frequente de brasileiros que se mudam para o exterior, bem como a utilização de veículos fora do Brasil para diversificação dos investimentos, proteção cambial, mitigação de risco político e econômico e, também, otimização da sucessão nas famílias multijurisdicioanais.

No início do ano, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a cobrança do ITCMD enquanto não houver lei complementar regulando a matéria nas hipóteses de: 1) transmissões em que o doador é residente/domiciliado no exterior; ou, ainda, 2) quando o falecido possuía bens, era residente/domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
Sobre o tema, vale esclarecer que o ITCMD é um tributo de competência impositiva dos estados e do Distrito Federal e tem sua previsão legal no artigo155, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

No que se refere especificamente ao ITCMD sobre bens situados no exterior, o supracitado artigo estabelece como pré-requisito para que os estados e o Distrito Federal possam tributar esse patrimônio a edição, pelo Congresso Nacional, de lei complementar, conforme se verifica em seu parágrafo primeiro, III, alínea “b”. Leia-se:

“Artigo 155 — Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I — transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
(…) §1.º O imposto previsto no inciso I:
I — relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;
II — relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
III — terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
a) se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
IV – terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal”.

Contudo, em que pese até o momento não tenha sido editada nenhuma lei complementar sobre o tema, muitos entes federativos [2] (entre eles o estado de São Paulo, por meio da Lei Estadual nº 10.705/00, artigo 4º, inciso II, alínea “b” [3]), estabeleceram nas respectivas legislações que o ITCMD será exigível nas transmissões por doação, quando o doador tiver domicílio ou residência no exterior, bem como nas transmissões causa mortis quando houver bens localizados no exterior, quando o de cujus era residente ou domiciliado no exterior ou caso o inventário tenha sido processado no exterior.

Diante desse cenário, diversos contribuintes passaram a ajuizar as medidas judiciais cabíveis no sentido de ver reconhecida a inconstitucionalidade de referidas leis ordinárias estaduais, sob a alegação de que estariam elas ferindo diretamente a competência exclusiva da União e reserva material de lei complementar.

As reiteradas controvérsias sobre esse mesmo assunto fizeram com que, em meados de 2015, o Plenário do STF definisse como tema de repercussão geral a incompetência legislativa dos estados para instituírem, sem lei complementar, o ITCMD sobre doações recebidas de residente fiscal no exterior e de heranças percebidas nos casos em que o de cujus possuía bens, era residente/domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior (Tema 825), escolhendo como paradigma o Recurso Extraordinário nº 851.108, de relatoria do ministro Dias Toffoli.
Com o julgamento do recurso extraordinário em questão, restou sedimentado o entendimento que reconhece a inconstitucionalidade da cobrança de ITCMD nas situações em que a Constituição Federal exige lei complementar para tanto, lei essa que ainda não foi editada pelo Congresso Nacional [4] .

Sendo assim, a mais alta corte brasileira, em nossa visão, reconheceu a prevalência dos direitos assegurados pela Constituição Federal em detrimento dos interesses arrecadatórios dos estados, fixando a seguinte tese para a repercussão geral do Tema nº 825: “É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no artigo 155, §1º, III, da Constituição Federal sem a edição da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional”.

Na sequência, o STF modulou os efeitos da decisão aos contribuintes, de modo que ela somente será aplicada aos fatos geradores posteriores à publicação do acórdão e às ações judiciais pendentes de conclusão até tal data. Referida modulação foi provida pela maioria do plenário, tendo um placar final de dez votos favoráveis aos efeitos ex nunc e apenas o ministro Marco Aurélio contrário.

Para tanto, o relator (ministro Dias Toffoli) modificou seu voto para aderir ao entendimento proferido pelo ilustre ministro Roberto Barroso no que se refere ao trecho abaixo:

“(…) 8. Os embargos do contribuinte discutem a modulação de efeitos da decisão realizada no julgamento. Como visto, o ministro relator, Dias Toffoli, votou para dar parcial provimento ao recurso para esclarecer que as exceções à eficácia ex nunc são alternativas, e não cumulativas. Estou de acordo com esse ponto do voto do eminente Relator, mas proponho também que se esclareçam dois outros aspectos suscitados nos embargos de declaração, a fim de evitar litigiosidade desnecessária. São eles: (a) se o Fisco pode cobrar o ITCMD relativo a fatos geradores anteriores à data de publicação do acórdão; e (b) se o contribuinte que ajuizou ação antes desse marco temporal pode ou não obter a restituição do tributo” [5].

Assim, com a redação final do acórdão, os contribuintes que possuem ações judiciais em curso e que não tenham efetuado o pagamento do imposto relativamente aos fatos geradores passados poderão beneficiar-se do entendimento, caso tenham ajuizado a competente demanda questionando a legalidade da cobrança ou a competência dos entes estaduais até a data da publicação do acórdão, que se deu em 20 de abril deste ano.

Ademais, a respeito da discussão acerca da tributação sobre transmissões a título gratuito (sucessões e doações) e os elementos de conexão desse imposto, vale destacarmos a doutrina do jurista Alberto Xavier, que aponta a existência do confronto de dois princípios fundamentais, conforme a relevância do elemento de conexão adotado, verbis:

“O princípio do domicílio, segundo o qual o Estado teria o poder de tributar a totalidade das transmissões patrimoniais efetuadas por pessoas nele residentes (domicílio do de cujus ou do doador) ou efetuadas em favor de beneficiários nele residentes (domicílio do beneficiário), independentemente do território em que localizam os bens ou direitos objeto da transmissão; e o princípio do locus rei sitae, segundo o qual o Estado teria o poder de tributar exclusivamente as transmissões patrimoniais relativas a bens e direitos localizados no seu território, sendo irrelevante o domicílio do transmitente ou do beneficiário.

O princípio do domicílio conduz, quanto à extensão da obrigação de imposto, ao princípio da universalidade, ou da tributabilidade ilimitada, abrangendo portanto bens e direitos situados no exterior; ao invés, o princípio do locus rei sitae conduz a um princípio da territorialidade (em sentido estrito) ou da tributabilidade limitada, restringindo os poderes tributários dos Estados aos bens e direitos localizados no seu território.

A verdade, porém, é que na época atual a generalidade dos Estados adota complexos sistemas em que se incorporam regras inspiradas em ambos os princípios” [6].

No que se refere aos elementos de conexão para aplicação do imposto em território nacional, a Constituição Federal disciplina a tributação de acordo com a espécie do bem. Sendo esse bem imóvel, a competência será do Estado em que este está localizado; se bem móvel, a competência será do Estado em que se processar o inventário ou que o doador possuir domicílio.

Em se tratando de bens situados em local diferente do domicílio do doador, sejam qualquer destes localizados no exterior, estaríamos diante de elemento de conexão relevante com o exterior, podendo haver concorrência entre as unidades federativas distintas.

Já nas hipóteses em que o doador é residente no Brasil e o bem objeto da liberalidade está situado em território nacional, não há o que se discutir, tendo em vista que não há divergência sobre a competência interestadual ou estrangeira.

Necessário analisar, ainda, um possível nexo causal entre o donatário residente fiscal no Brasil recebendo bens advindos do exterior. Tendo essa hipótese sido o cerne do recurso extraordinário, temos que a incidência do imposto é afastada até que seja publicada lei complementar que estabeleça o vínculo tributário.

Pelo exposto, verificamos que o julgamento ora analisado — ainda que não esteja imune a críticas ou vícios de omissão — representa importantíssimo avanço em matéria de segurança jurídica e norteador interpretativo no que se refere à legislação tributária pátria.
Ressalta-se que eventuais leis complementares a serem editadas pelo ente federativo deverão propiciar entendimento sobre as lacunas deixadas pela repercussão geral (Tema 825).

Além disso, no que se refere ao planejamento patrimonial e sucessório dos brasileiros, é tema de extrema relevância, seja porque há um número grande de nacionais com residência no exterior, seja pela crescente quantidade de brasileiros que se utilizam de estruturas externas para alocação para gestão e resguardo patrimonial.
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[1] Para consulta, verificar: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur444598/false

[2] Atualmente 22 das 27 entidades federativas do Brasil, incluindo o Distrito Federal, regulam a matéria.
[3] “Artigo 4º — O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o de cujus possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:
I – sendo corpóreo o bem transmitido:
(…) b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado;
II – sendo incorpóreo o bem transmitido:
(…) b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado”.
[4] Vale esclarecer que existe Projeto de Lei (PL n° 432/2017) em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal para regulamentação da competência da instituição do imposto nas situações em que 1) o doador tiver domicílio no exterior; 2) o de cujus tinha domicílio no exterior; ou 3) o inventário foi processado no exterior (inciso III do § 1º do artigo 155 da CF). Para consulta: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131473
[5] STF |EMB. DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 851.108 SÃO PAULO. Voto Vista do Ministro Roberto Barroso — página 7.
[6] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 6ª edição Reformulada e atualizada Editora Forense. Rio de Janeiro, 2005, páginas 260 e 261

Joanna Oliveira Resende Barbosa é sócia da área de Wealth Planning do Velloza Advogados.

Izabel Guedes Nazarian é advogada sênior da equipe de Wealth Planning do Velloza.

Natalia Zimmermann é sócia da área de Wealth Planning do Velloza Advogados.

Fonte: Conjur