Jornalista e escritor gaúcho, Eduardo Bueno concedeu entrevista exclusiva à Anoreg/RS para falar sobre a relação da história com a atividade dos cartórios
O jornalista e escritor Eduardo Bueno, também conhecido como “Peninha”, concedeu entrevista exclusiva à Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul (Anoreg/RS) para falar sobre a relação da história com a atividade dos serviços cartorários.
Eduardo Bueno também é editor, tradutor e youtuber. Formou-se em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi apresentador e comentarista de programas especiais no canal History e, depois, passou a apresentar “pílulas históricas” extraídas do livro Brasil: Uma História. Também trabalhou nos principais jornais e revistas do país, entre os quais Rede Globo, O Estado de S. Paulo e o jornal Zero Hora. Atualmente comanda o canal “Buenas Ideias” no YouTube, que narra a história do Brasil.
Leia a entrevista completa:
Anoreg/RS – O notariado é uma das profissões mais antigas do País, e os relatos da descoberta do Brasil foram feitos pelo tabelião português Pero Vaz de Caminha. Na sua opinião, qual a importância do tabelião português na narrativa e documentação da descoberta do Brasil?
Eduardo Bueno – De fato o Notariado é uma profissão antiga no Brasil, e eu costumo inclusive dizer que o Brasil é o único país do mundo que entrou no curso oficial da história, por meio de uma obra prima da literatura, e essa obra prima foi escrita pelo Pero Vaz de Caminha, que realmente tinha um vínculo com o tabelionato e o notariado, embora ele fosse mais ligado à ciências contábeis, ele era um contador e, basicamente, ele estava seguindo na frota para ser o contador da feitora de Calicute, mas naquele momento as estruturas ligadas ao Judiciário e à Fazenda estavam juntas, e como ele exercia um cargo ligado à Fazenda por ser contador, ele também tinha um vínculo com toda essa estrutura burocrática de Portugal.
A importância do tabelião português na narrativa e documentação da descoberta do Brasil se torna fundamental pela própria presença do Caminha. Mas é importante salientar que o Brasil também se vinculou à história da expansão portuguesa através de uma teia burocrática que muitas vezes era ineficiente, e alguma outras vezes estava vinculada à corrupção. Evidentemente, que a corrupção e ineficiência não eram “exclusividades” desses dois setores da sociedade portuguesa, pelo contrário, eles eram um reflexo de uma corrupção e de uma ineficiência que existia na sociedade como um todo, mas de qualquer forma houve essa teia burocrática que várias vezes retardou o desenvolvimento do Brasil. Eu acho que isso deve ficar claro para qualquer um que estude a história dos cartórios, porque não adianta a gente esconder os problemas das nossas instituições e os problemas da nossa sociedade civil, pelo contrário, eles têm raízes históricas, e quem sabe as raízes históricas deles está mais preparado para saná-los em prol de uma sociedade mais eficiente e transparente.
Anoreg/RS – Como avalia a evolução histórica e importância dos cartórios brasileiros?
Eduardo Bueno – O Brasil herdou essa estrutura burocrática que é ibérica, e se você comparar os países latino-americanos criados a partir da expansão ibérica, ou seja, espanhola e portuguesa pelo mundo, você vai ver que são muito mais burocráticos do que os países criados na esteira da expansão britânica, digamos assim, inglesa, ou mesmo holandesa, que são povos que tinham menos teias burocráticas. É isso importante saber, por que os países ibéricos são tão burocratizados? Porque havia o cerne de uma corrupção muito grande na Espanha e Portugal, quem estuda história sabe disso, tinha um viés corrupto que permeava as sociedades ibéricas desde o século XIII/XIV, e os cartórios e as documentações surgiram para tentar impedir a expansão dessa corrupção, desses desvios de verba, desses malfeitos. E essa corrupção acabou se imiscuindo dentro desse sistema cartorial ao longo da história na Espanha, Portugal e no Brasil. Mas de novo, isso que eu quero repetir, não se trata de uma acusação aos cartórios e aos tabelionatos, se trata de uma reflexão de que o germe da corrupção tem proliferado em sociedades ibéricas, que Espanha e Portugal foram capazes mais eficientemente de combatê-los, mas que ele se instaurou nos países colonizados por ele na América Latina. Os países da América Latina, o Brasil inclusive, tem ainda dentro de si uma carga de corrupção muito grande, e corrupção que atinge os cartórios. E agora, mesmo atingindo os cartórios, os cartórios podem e devem ser, e de certa forma são, um dos mecanismos eficientes para combater os malfeitos, não só a corrupção geral da sociedade, como pequenas corrupções particulares. E mesmo isso significando uma carga burocrática grande, é uma barreira para que não se expandam os negócios malfeitos.
Anoreg/RS – Quais curiosidades e características destacaria do trabalho notarial e registral na composição da história do Brasil?
Eduardo Bueno – Uma das coisas mais importantes que deve ser salientado é que dentro dessa estrutura que, de uma ordem social injusta, que gerava uma sociedade igualmente injusta, com uma grande desigualdade social em Portugal, e que daí o Brasil intrejeiou, é o fato que o Brasil foi colonizado por degredados, e por que degredados? Porque a Lei em Portugal vigiava e punia muitas vezes com rigor excessivo, que não era o castigo que corrigia, era o castigo que gerava apenas revolta e ódio, dentre eles o degredo. Muita gente era condenada ao degredo no Brasil, tanto é que na mesma expedição que tínhamos o Pero Vaz de Caminha, tínhamos degredados que foram deixados no Brasil, e só se sabe o nome de um deles, Afonso Ribeiro, graças a um ato notarial, porque ele foi deixado aqui pela expedição de Cabral no dia 2 de maio de 1500, dia que a expedição foi embora. O Caminha relata, inclusive, que ele ficou chorando e pedindo para não ficar ali, e foi resgatado pela expedição seguinte, cerca de um ano depois, a partir de abril de 1501, quando a expedição da qual fazia parte o Américo Vespúcio chegou e o recolheu em Porto Seguro, e ele fez o resto da viagem da expedição do Américo Vespúcio e voltou para Lisboa onde é obrigado a prestar um depoimento juramentado, que é tomado por um certo Valentim Fernandes, e que se chama ‘Ato Notarial de Valentim Fernandes’, no qual esse degredado conta como foi esse um ano que ele viveu no Brasil, informações que seriam importantíssimas para os portugueses que viriam depois, como que os indígenas viviam, o que comiam, como moravam, inclusive o ritual antropofágico e o uso do pau-brasil, tudo isso.
Anoreg/RS – Qual a importância da atuação cartorária como registro da história?
Eduardo Bueno – Fundamental e decisivo, porque o Brasil é um país que infelizmente preserva muito pouco os seus registros históricos. O Museu Nacional queimou faz pouco, os documentos em institutos históricos às vezes se perdem, são comidos por traças, mal arquivados, e a estrutura cartorial brasileira registra esses documentos, então você tem condições de saber como eram os preços desses imóveis, como se davam as transações, até no próprio cartório tem uma trajetória ligada à abolição da escravatura e das compra de cartas de alforria, de escravos que conseguiram comprar a sua liberdade, transações advindas de escravos, porque o Brasil não pode esquecer que foi o país que recebeu o maior número de escravos na história da humanidade, foram 5 milhões de escravos ao longo de 300 anos de escravidão, e esse é um legado que a gente tem que estar ciente para acabar com o racismo estrutural e diminuir as desigualdades sociais do Brasil. Como os documentos sobre escravidão foram mandados queimar pelo Rui Barbosa para que os proprietários de escravos não requeressem indenizações do governo depois da dita abolição da escravatura, alguns dos raríssimos registros que sobraram da história da escravatura no Brasil estão arquivados em cartórios, o que mostra que os cartórios são fundamentais para a reconstrução da história do Brasil, e o único jeito de construir um país mais decente e mais digno é sabendo sua história, e os cartórios são uma peça fundamental nessa construção da nossa história.
Fonte: Assessoria de Comunicação – Anoreg/RS