“A publicização do gênero do cidadão se dá através da sua certidão de nascimento”

Presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do IBDFAM, Márcia Fidélis Lima concedeu entrevista à Arpen/RS sobre o gênero neutro no registro civil

A oficial de registro civil e presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)Márcia Fidélis Lima, concedeu entrevista à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS) para falar sobre o gênero neutro no registro civil.

De acordo com Márcia, “todas as alterações importantes no estado da pessoa natural devem ser levadas à inscrição no Registro Civil das Pessoas Naturais. Alterações no estado civil estrito – aquele que se relaciona à condição da pessoa em função do casamento – são de publicização obrigatória, por exemplo”.

Confira a entrevista na íntegra:

Arpen/RS – Como avalia o Registro Civil das Pessoas Naturais como instrumento de demonstração do formato familiar?

Márcia Fidélis Lima – Todas as alterações importantes no estado da pessoa natural devem ser levadas à inscrição no Registro Civil das Pessoas Naturais. Alterações no estado civil estrito – aquele que se relaciona à condição da pessoa em função do casamento – são de publicização obrigatória, por exemplo.

Contudo, o casamento na atual ordem constitucional, é uma das várias configurações familiares cujos efeitos jurídicos têm tanto reconhecimento quanto a proteção do Estado. Não obstante isso, a sociedade conjugal formalizada através do casamento ainda é a que traz maior segurança jurídica tanto aos cônjuges quanto à sociedade justamente por poder ser instrumentalizada – e por isso facilmente comprovada – pela certidão de casamento.

Entidades familiares fáticas podem ter certa dificuldade em garantir efeitos jurídicos pela necessidade de comprovação de sua existência, já que os meios de prova não são tão objetivos quanto a certidão de casamento.

A União Estável, por sua vez, enquanto relacionamento conjugal de fato, vem passando por uma transição conceitual que está relativizando sua condição informal, uma vez que, mesmo não alterando o estado civil dos companheiros, é submetida a uma gradativa formalização, sendo passível até de registro no Registro Civil das Pessoas Naturais, quando esse tipo de ato era exclusivo para as alterações de estado.

Portanto, se antes a certidão de registro civil demonstrava seguramente o estado familiar dos cidadãos, hoje demonstra sua identidade, seu estado individual, sua qualificação na sociedade. Se antes uma certidão de casamento poderia ser suficiente para identificar todos os membros de uma família (até mesmo os filhos eram, muitas vezes, registrados no termo de casamento dos pais), hoje cada membro tem a sua identificação civil. Comprovando o seu estado enquanto cidadão, de forma atual, pública e autêntica, ele poderá decidir a configuração familiar que melhor contribua para o seu desenvolvimento e das pessoas por quem tem afeto, para o estilo de vida que escolheu para si e que melhor atenda às suas expectativas de felicidade.

Arpen/RS – Como o gênero neutro repercute no registro civil e qual a importância do papel do registro civil no processo de identificação do gênero neutro?

Márcia Fidélis Lima – A legislação registral define como elemento do registro de nascimento o “sexo” do cidadão e não o seu “gênero”. Não obstante os conceitos específicos de sexo (característica físico-biológica) e de gênero (autopercepção) serem divergentes, o estado sexual da pessoa natural mencionado no registro (e, por consequência, na certidão) de nascimento, é o que apontará o seu gênero. A informação que for preenchida nesse campo apontará a manifestação de gênero do cidadão. Portanto, uma mulher que tenha, por exemplo, características físicas do sexo masculino, poderá ter no seu registro o que define a sua autopercepção através do preenchimento do campo “sexo” como feminino.

A definição do estado sexual da pessoa natural é estabelecida no ato de lavratura do seu registro de nascimento, observando o apontamento do Estabelecimento de Saúde na Declaração de Nascido Vivo (DNV) que permite 3 opções: masculino, feminino e ignorado. O gênero neutro é uma condição que não caracteriza uma pessoa dentro da dicotomia masculino-feminino.

Estudos demonstram de forma conclusiva que a binaridade não define a totalidade dos seres humanos. O gênero neutro ou não binário, tanto quanto os binários (homem-mulher) também define o estado da pessoa natural devendo, portanto, estar expresso no seu registro de nascimento. Porém, não há essa opção nas DNVs. O Provimento nº 122/2021, do CNJ determinou que, para as pessoas na condição intersexo, o registro deverá mencionar seu sexo como “ignorado”. Uma maneira de evitar a binaridade não verdadeira, de forma imediata e independentemente de alteração legislativa ou de reiteradas manifestações jurisprudenciais.

No estado do Rio de Janeiro há decisões judiciais autorizando a alteração do sexo para que conste “não-binárie” quando não for adequado nem o feminino e nem o masculino. É um avanço importante no sentido de já se admitir expressamente uma condição fora da dicotomia tradicional. Ressalta-se, porém, o uso – a meu ver equivocado – na linguagem neutra (não-binárie), com a intenção de apontar uma neutralidade que, no caso, é indevida, já que se pretende mencionar “o sexo” da pessoa. E sexo é palavra masculina. Tanto que a regra é preencher com as palavras “masculino” e “feminino”. A concordância deverá ser com o gênero da palavra sexo, que é uma palavra masculina. Nesse caso, a título de mero comentário, sugere-se mais adequado usar “não-binário”, já que não se refere à pessoa e sim ao seu sexo.

Observa-se, portanto, que a publicização do gênero do cidadão se dá através da sua certidão de nascimento. É o documento expedido pelo registrador civil que mostrará à sociedade todas as características que compõem o estado da pessoa natural, inclusive o seu sexo/gênero.

Arpen/RS – Quais cuidados devem ser adotados pelo registrador civil para estar alinhado com as normativas e decisões judiciais sobre o tema?

Márcia Fidélis Lima – As duas situações das perguntas anteriores demonstram a importância de o registrador acompanhar diariamente tanto eventuais alterações legislativas e normativas como também a jurisprudência, a doutrina e até as mudanças culturais da sociedade. Não obstante a observância obrigatória do princípio da legalidade, entender o contexto e as tendências que possam levar a mudanças de interpretação de preceitos legais podem fazer diferença na entrega de um serviço público eficaz, inclusivo e acolhedor.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/RS