Advogada Ana Paula Vasconcelos fala sobre a paternidade e maternidade de casais homoafetivos
Em entrevista à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS), a advogada Ana Paula Vasconcelos abordou questões relacionadas à paternidade e maternidade de casais homoafetivos. Ela discutiu os principais avanços legislativos dos últimos anos, os procedimentos e requisitos para garantir o reconhecimento legal de filhos de casais homoafetivos, além de analisar possíveis diferenças em relação aos casais heterossexuais referentes à legislação de filiação e parentalidade.
“A legislação não estabelece diferenciações entre adoções realizadas por casais homoafetivos ou heteroafetivos. O art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente esclarece que podem adotar os maiores de 18 anos, independentemente do estado civil”, explicou a advogada.
Ana Paula Vasconcelos é mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Bacellar e graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Além disso, é coordenadora e professora do Curso de Especialização em Direito das Famílias e Sucessões da PUCPR.
Confira a íntegra da entrevista:
Arpen/RS – Quais são os principais avanços legislativos relacionados aos direitos
de filhos de casais homoafetivos ao longo dos últimos anos?
Ana Paula Vasconcelos – As famílias homoafetivas começaram a vivenciar avanços significativos a partir do seu reconhecimento como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, o STF reconheceu plena igualdade em direitos e deveres entre os casais heteroafetivos e homoafetivos. Reconheceu-se que pessoas do mesmo sexo podem constituir família, e que a essa modalidade familiar serão aplicadas as mesmas regras, e garantidos os mesmos direitos, que asseguram as relações heteroafetivas. Isso significa que os filhos de casais homoafetivos possuem os mesmos direitos que os filhos de casais heteroafetivos, sem espaço para qualquer tipo de discriminação ou preconceito em decorrência da origem e modalidade de filiação.
A posição do STF veio para afirmar e assegurar o exercício pleno dos direitos pelas famílias homoafetivas. A Constituição Federal elegeu em seu art. 1º a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Com a dignidade erigida a fundamento da República, e sendo a liberdade um dos pilares da dignidade, é evidente que deveria ser concedido a cada um(a) a possibilidade de viver de acordo com a sua própria concepção de felicidade e bem-estar. E essa liberdade corresponde a um dever do Estado de permitir que a pessoa tenha condições de assim se desenvolver – no caso, assegurar a aplicação dos direitos e a proteção destinada à família também às famílias homoafetivas.
A Constituição Federal traz em seu art. 226 que a família merece proteção do Estado, sendo que são todas as modalidades de família que devem ser respeitadas, sem qualquer distinção. A formação de uma família homoafetiva decorre do exercício da liberdade inerente à própria dignidade, e deve receber igual proteção do Estado e da Constituição Federal.
Disso se conclui que não há mais como restringir o exercício dos direitos sociais tão somente às entidades familiares heteroafetivas, ou fazer qualquer tipo de diferenciação que inviabilize o exercício desses direitos pelos núcleos familiares homoafetivos.
Arpen/RS – Em termos de registro civil, quais são os procedimentos e requisitos
para garantir o reconhecimento legal de filhos de casais homoafetivos?
Ana Paula Vasconcelos – O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário 898.060 e da análise da Repercussão Geral 622, expressamente reconheceu a possibilidade de coexistência de duas mães ou de dois pais para um mesmo filho. Permite-se, então, a coexistência da parentalidade oriunda de vínculo biológico e da parentalidade oriunda de vínculo socioafetivo.
Transcreve-se, agora, a tese aprovada pela Corte Suprema com efeito vinculante:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
À luz do entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, tem-se a plena possibilidade de que uma mesma criança tenha, ao mesmo tempo, dois pais ou duas mães.
E para facilitar o registro civil de crianças geradas em decorrência de métodos de fertilização in vitro, a Corregedoria Nacional de Justiça publicou em março de 2016 o Provimento nº. 52, que dispunha sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida.
Veja-se o que dispunha o art. 1º, caput, e §2º, do provimento indicado:
Art. 1º. O assento de nascimento dos filhos havidos por técnicas de reprodução assistida, será inscrito no livro “A”, independentemente de prévia autorização judicial, e observada a legislação em vigor, no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, seja o casal heteroafetivo ou homoafetivo, munidos da documentação exigida por este provimento.
[…]
- 2º Nas hipóteses de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem haver qualquer distinção quanto à ascendência paterna ou materna. (g.n.)
Esse provimento veio a ser revogado posteriormente pelo Provimento nº 63, de novembro de 2017, mas as disposições quanto à reprodução assistida e registro civil por casais homoafetivos se mantiveram. Confira-se:
Art. 16. O assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida será inscrito no Livro A, independentemente de prévia autorização judicial e observada a legislação em vigor no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, munidos de documentação exigida por este provimento.
[…]
- 2º No caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna.
O Provimento nº 63, de novembro de 2017, também foi revogado, estando em vigor, hoje, as disposições constantes no Provimento nº 149 de 30/08/2023, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro.
Veja o que o provimento diz em seu art. 512, §2º:
Art. 512. O assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida será inscrito no Livro A, independentemente de prévia autorização judicial e observada a legislação em vigor no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, munidos de documentação exigida por este Capítulo.
(…)
- 2.º No caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna.
Portanto, para que os filhos de casais homoafetivos sejam registrados em nome de ambos os pais/mães, em se tratando de reprodução assistida, basta a apresentação dos seguintes documentos: declaração de nascido vivo (DNV); declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários; certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.
A dificuldade reside nos casos em que os filhos são frutos de inseminação caseira. O protocolo adotado para sua realização consiste, basicamente, na doação gratuita, voluntária e anônima do sêmen que será utilizado para dar seguimento à inseminação. A partir disso, o material genético é imediatamente introduzido no corpo da mulher, com o auxílio de uma seringa, sem que haja qualquer tipo de contato direto entre a receptora e o doador. Por fim, eventual sucesso do procedimento deve ser confirmado pelos meios tradicionais.
Como nessa hipótese os documentos indicados anteriormente não existem, não é possível realizar o registro da filiação diretamente no cartório. Nesses casos, é preciso iniciar um processo judicial para que se dê o reconhecimento da dupla maternidade ou paternidade, buscando, então, autorização judicial para que o filho seja registrado em nome de ambos os pais/mães.
Arpen/RS – Como a legislação aborda questões de filiação e parentalidade em casos
de adoção por casais homoafetivos? Existem diferenças em relação aos
casais heterossexuais?
Ana Paula Vasconcelos – A legislação não traz diferenciações entre adoções realizadas por casais homoafetivos ou heteroafetivos. O art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente esclarece que podem adotar os maiores de 18 anos, independentemente do estado civil. Em seu parágrafo segundo, ao tratar da adoção conjunta, dispõe apenas ser indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. Já o art. 43 dispõe que a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. Percebe-se que, na legislação, não é trazida qualquer diferenciação ou especificação relacionada à orientação sexual ou identidade de gênero do casal que está buscando a adoção. O fato de se tratar de um casal homoafetivo ou heteroafetivo não pode ser utilizado como critério para viabilizar ou não a adoção, bastando que as pessoas que pretendem adotar sejam aptas ao exercício da parentalidade, e que a adoção represente o melhor interesse da criança e/ou do adolescente.
Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/RS