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“O Registro Civil ajuda a solidificar a estrutura familiar, fornecendo um quadro legal para direitos e deveres, tais como aqueles relacionados à herança, guarda de filhos, benefícios de segurança social e muito mais”

Advogada Patrícia Gorisch fala sobre o RCPN como instrumento de demonstração do formato familiar em entrevista à Arpen/RS

A advogada e pós-graduada em Direito de Família, Patrícia Gorisch, fala em entrevista à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS) sobre o Registro Civil das Pessoas Naturais como instrumento de demonstração do formato familiar.

“O Registro Civil ajuda a solidificar a estrutura familiar, fornecendo um quadro legal para direitos e deveres, tais como aqueles relacionados à herança, guarda de filhos, benefícios de segurança social e muito mais”, destaca Patrícia.

Confira a íntegra da entrevista:

Arpen/RS – Como avalia o Registro Civil das Pessoas Naturais como instrumento de
demonstração do formato familiar?

Patrícia Gorisch – Entendo que o Registro Civil das Pessoas Naturais é uma instituição extremamente relevante quando se trata de formalizar e dar visibilidade aos diferentes formatos familiares existentes na sociedade. O Registro Civil não é apenas uma ferramenta burocrática; é também um instrumento social que legitima relações familiares perante a lei e a sociedade. Em um sentido mais amplo, o Registro Civil ajuda a solidificar a estrutura familiar, fornecendo um quadro legal para direitos e deveres, tais como aqueles relacionados à herança, guarda de filhos, benefícios de segurança social e muito mais. Além disso, em um contexto de crescente diversidade nos arranjos familiares — que agora incluem não apenas famílias nucleares, mas também famílias monoparentais, casais homoafetivos, famílias reconstituídas e outros — o Registro Civil adapta-se para refletir essa realidade social. Entretanto, é preciso reconhecer que, como qualquer instituição, o Registro Civil também pode ter suas limitações. Por exemplo, ele muitas vezes reflete as normas e valores sociais dominantes de uma época, o que pode resultar em alguma forma de exclusão ou estigmatização de arranjos familiares considerados “não tradicionais”. Mas é exatamente por isso que a modernização e a adaptação das práticas e políticas de registro são cruciais. A Arpen/RS tem um papel importante nesse contexto, trabalhando em conjunto com os cartórios para garantir que os serviços de registro estejam alinhados com as necessidades e realidades contemporâneas da população do Rio Grande do Sul. A organização pode funcionar como uma ponte entre a legislação e a prática, assegurando que os registros civis sejam tanto precisos quanto inclusivos. Portanto, considero o Registro Civil das Pessoas Naturais um instrumento poderoso e necessário para a demonstração e legitimação dos diversos formatos familiares existentes hoje em dia. E é fundamental que continuemos a evoluir na maneira como conduzimos esses registros, para que eles sejam verdadeiramente representativos do rico entralaçamento social que compõe as famílias brasileiras.


Arpen/RS – Quais cuidados devem ser adotados pelo registrador civil para estar
alinhado com as normativas e decisões judiciais sobre o tema?

Patrícia Gorisch – Com base na minha experiência, identifico alguns cuidados essenciais que os registradores civis devem adotar para estar alinhados com as normativas e decisões judiciais em relação a formatos familiares e outros assuntos conexos. A lei está sempre em movimento, com alterações legislativas e novas decisões judiciais. É imprescindível que os registradores estejam sempre atualizados, tanto com relação às leis federais quanto às estaduais. Cursos de capacitação, seminários e webinars são formas eficazes de manter-se informado. Em casos mais complexos, que apresentam dúvidas interpretativas ou lacunas, a consultoria jurídica é indispensável. É sempre mais seguro ter um parecer jurídico para embasar a tomada de decisões. O direito de família está evoluindo para ser cada vez mais inclusivo, reconhecendo diferentes arranjos familiares. O registrador deve ter a sensibilidade para adaptar suas práticas dentro dos limites que a legislação e a jurisprudência permitem. Os procedimentos estabelecidos por órgãos regulatórios e normativos devem ser seguidos à risca. Desvios, mesmo que bem-intencionados, podem levar a complicações legais e éticas. A proteção de dados pessoais e a garantia de confidencialidade são fundamentais na atividade registral. A violação desses princípios pode resultar em responsabilidade legal. Em determinados casos, a efetivação do registro civil envolve comunicação com outros órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público ou serviços sociais. Uma comunicação eficiente e transparente é fundamental para o cumprimento adequado das normas. Manter canais abertos para receber feedbacks tanto de usuários dos serviços como de profissionais do Direito pode oferecer insights valiosos para melhorar e ajustar as práticas registrais.

Arpen/RS – Como o gênero neutro repercute no registro civil?

Patrícia Gorisch – A inclusão do gênero neutro no Registro Civil é uma questão que vem ganhando atenção tanto no Brasil como internacionalmente. O tema é complexo e envolve diversas esferas, desde questões éticas e de direitos humanos até implicações legais e administrativas. A possibilidade de registrar gênero neutro tem o potencial de ser um passo significativo para o reconhecimento e inclusão de pessoas não-binárias, agêneras ou que se identificam fora do espectro de gênero masculino/feminino. Isso pode contribuir para a redução do estigma e da discriminação que essas pessoas frequentemente enfrentam. Por outro lado, a implementação dessa mudança traz desafios legais consideráveis. O sistema legal brasileiro, assim como muitos outros, tem uma estrutura histórica que considera apenas os gêneros masculino e feminino. Isso afeta não apenas o Registro Civil, mas também áreas como o direito de família, previdenciário e até mesmo penal. Adaptações legais seriam necessárias em diversos níveis. A adoção do gênero neutro no registro civil teria também um efeito cascata em outros documentos oficiais, como passaportes, carteiras de identidade e certidões. Isso implicaria mudanças nos sistemas de TI e treinamento para os funcionários. Para que o gênero neutro seja uma opção viável, diretrizes claras devem ser estabelecidas. Isso envolve um trabalho multidisciplinar que inclui juristas, profissionais de saúde, representantes da comunidade LGBTQIA+ e outros stakeholders. Também é crucial que haja programas de educação e sensibilização para o público e para os profissionais envolvidos nos registros civis. Isso facilita uma implementação mais tranquila e reduz as chances de episódios discriminatórios. A inserção do gênero neutro no Registro Civil pode trazer desafios em termos de reconhecimento internacional de documentos, exigindo acordos bilaterais ou multilaterais para assegurar a eficácia desses registros fora do país.

A discussão sobre a inclusão do gênero neutro no Registro Civil é de extrema importância e traz tanto oportunidades para a promoção da igualdade e da diversidade quanto desafios práticos e legais que precisam ser cuidadosamente abordados. Como advogada, acredito que este é um campo em que o direito deve evoluir para refletir e respeitar a complexa realidade humana. É uma observação crucial que o respeito e a inclusão do gênero neutro no Registro Civil não retira nem diminuem os direitos e garantias de outras pessoas que se identificam com os gêneros tradicionalmente reconhecidos. Pelo contrário, a inclusão do gênero neutro contribui para um ambiente mais igualitário e inclusivo para todos, sem prejudicar ninguém. Importante também frisar que essa inclusão é uma questão de dignidade para pessoas que se identificam fora do espectro binário de gênero. A dignidade humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme estabelece a Constituição Federal, e é também um princípio reconhecido internacionalmente. O respeito à identidade de gênero entra diretamente nessa esfera de dignidade, conferindo a cada indivíduo o direito de ser reconhecido e respeitado em sua integralidade. Essa mudança não é apenas simbólica, mas tem impactos concretos na vida das pessoas, podendo afetar desde a saúde mental até oportunidades de trabalho e educação para aqueles que se identificam com o gênero neutro. Ao reconhecer esta opção no Registro Civil, o Estado dá um passo importante para garantir que todas as pessoas, independentemente de como se identificam em termos de gênero, possam viver com a dignidade e o respeito que merecem.

Nesse contexto, os registradores civis têm um papel vital como agentes de um serviço público que está diretamente ligado ao reconhecimento legal e social das pessoas. A formação e a sensibilização desses profissionais são indispensáveis para que o processo ocorra de forma respeitosa e dentro dos parâmetros legais, reforçando que o reconhecimento do gênero neutro é uma questão de direitos humanos e dignidade. Portanto, considero que a inclusão e o respeito ao gênero neutro no Registro Civil são passos necessários e valiosos na construção de uma sociedade mais igualitária e respeitosa para com todas as pessoas.

Arpen/RS – Qual a importância do papel do registro civil no processo de
identificação do gênero neutro?

Patrícia Gorisch – A importância do Registro Civil na identificação do gênero neutro é imensa e multidimensional. Este órgão é fundamental não apenas para a documentação dos cidadãos, mas também para o reconhecimento legal e social da identidade individual. É a partir deste registro que uma série de outros direitos e deveres são estabelecidos, fazendo com que sua exatidão e integridade sejam cruciais. O Registro Civil confere um selo de legitimidade à identidade de uma pessoa. Ter um documento que reconhece o gênero com o qual o indivíduo se identifica é uma forma poderosa de validação, que pode ter impactos profundos no bem-estar psicológico e emocional da pessoa. O reconhecimento do gênero neutro no Registro Civil permitirá um acesso mais igualitário a direitos e serviços que exigem identificação. Isso inclui acesso a saúde, educação, emprego, e até mesmo o exercício de direitos civis, como o voto. O reconhecimento oficial também é uma ferramenta no combate à estigmatização e à discriminação com base na identidade de gênero. Quando o Estado reconhece e legitima a identidade de gênero neutra, ele envia uma mensagem clara à sociedade de que essa identidade é válida e deve ser respeitada. Ao incluir o gênero neutro em conformidade com normativas e decisões judiciais, o Registro Civil se posiciona como um agente de cumprimento da lei e de promoção dos direitos humanos. O Registro Civil tem o potencial de estabelecer um padrão claro e uniforme para o reconhecimento do gênero neutro, o que pode facilitar a compreensão e a aplicação deste conceito em outras esferas da vida pública e privada. Com o reconhecimento do gênero neutro, é possível também que se colete dados mais precisos sobre esta população. Isso é fundamental para a elaboração de políticas públicas mais eficazes e inclusivas. Uma vez que o gênero neutro é reconhecido no Registro Civil, ele automaticamente se torna uma opção em outros documentos e registros, desde a carteira de identidade até passaportes e registros acadêmicos. Registro Civil tem uma importância significativa na questão do gênero neutro não apenas em uma jurisdição ou país específico, mas também em uma escala global. A seguir, destaco algumas das razões pelas quais essa relevância transcende fronteiras: A inclusão do gênero neutro em registros civis está alinhada com padrões internacionais de direitos humanos que buscam proteger a dignidade e a liberdade individual. Assim, países que adotam essa medida reforçam seu compromisso com princípios universais de igualdade e não-discriminação. Em um mundo globalizado, as pessoas frequentemente cruzam fronteiras para trabalho, estudo ou outros motivos. Ter um registro civil que reconheça o gênero neutro facilita a emissão de documentos de viagem e outros registros que são aceitos internacionalmente, simplificando a vida dessas pessoas. Quando um país implementa o reconhecimento do gênero neutro em seu Registro Civil, ele serve como um modelo que outros podem seguir. Isso pode acelerar a adoção de práticas similares em outras jurisdições, contribuindo para um movimento global em direção à igualdade de gênero. O reconhecimento do gênero neutro pode influenciar a forma como organizações internacionais, como as Nações Unidas ou a Organização Mundial da Saúde, abordam questões de identidade de gênero, podendo levar a recomendações ou diretrizes globais. Para pessoas não-binárias que estão buscando asilo ou refúgio, ter documentos que reflitam sua identidade de gênero pode ser crucial para garantir um tratamento digno e justo em processos legais ou em campos de refugiados. Questões como dupla cidadania, casamentos internacionais e outros contratos legais podem ser complicados por divergências no reconhecimento da identidade de gênero. A adoção mais generalizada de categorias de gênero neutro em registros civis pode ajudar a harmonizar estas leis. A adoção de gênero neutro em registros oficiais também tem o potencial de educar o público globalmente sobre a existência e a legitimidade de identidades fora do binário de gênero, contribuindo para uma sociedade mais inclusiva e tolerante em escala mundial. Portanto, o impacto do Registro Civil na questão do gênero neutro não é isolado; ele reverbera em múltiplas dimensões sociais e legais em todo o mundo. É um passo significativo em direção a uma compreensão mais inclusiva e respeitosa da diversidade humana em uma escala global.

O papel do Registro Civil, portanto, vai muito além do simples ato de documentar um fato. Ele tem um impacto profundo na vida das pessoas, afetando sua dignidade, seus direitos e sua integração na sociedade. Nesse sentido, o reconhecimento do gênero neutro por este órgão seria um marco significativo na promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Agradeço novamente a oportunidade e espero que essas considerações possam contribuir para o debate e para a excelência dos serviços de registro civil no Rio Grande do Sul e em todo o Brasil.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/RS