Em 1994, com a edição da Lei dos Cartórios (8.935/94), a fim de regulamentar o artigo 236 da Constituição, o Estado reconheceu a antigos trabalhadores (escreventes/auxiliares) dos cartórios extrajudiciais a opção de migrarem para a Consolidação das Leis do Trabalho ou de permanecerem contratados sob o regime especial ou estatutário. O artigo 48 da referida lei conferiu tal direito, ficando assim redigido:
“Artigo 48 — Os notários e os oficiais de registro poderão contratar, segundo a legislação trabalhista, seus atuais escreventes e auxiliares de investidura estatutária ou em regime especial desde que estes aceitem a transformação de seu regime jurídico, em opção expressa, no prazo improrrogável de trinta dias, contados da publicação desta lei.§ 1º. Ocorrendo opção, o tempo de serviço prestado será integralmente considerado, para todos os efeitos de direito. §2º. Não ocorrendo opção, os escreventes e auxiliares de investidura estatutária ou em regime especial continuarão regidos pelas normas aplicáveis aos funcionários públicos ou pelas editadas pelo Tribunal de Justiça respectivo, vedadas novas admissões por qualquer desses regimes, a partir da publicação desta lei”.
Os problemas decorrentes desse regime (especial ou estatutário) hoje são inúmeros, sobretudo quando o cartório extrajudicial, que se encontrava vago, é assumido por novo delegatário do serviço, que resolve legitimamente não contratar antigo funcionário cartorário não optante pelo regime celetista.
No estado de São Paulo, tais escreventes ao se desligarem da serventia não raro demandam os novos tabeliães e oficiais por créditos da vetusta relação de trabalho eventualmente inadimplidos pela entidade delegante e, nesse contexto, pedem a aplicação da sucessão trabalhista.
Se a existência da sucessão de empregadores já é duvidosa em si (dada a delegação originária e personalíssima de notários e registradores), no caso de escreventes não celetistas a questão se torna ainda mais discutível. De qualquer forma, se o Estado brasileiro reconheceu por meio da Lei dos Cartórios o regime de contratação estatutário só se pode concluir que chamou para si a total e única responsabilidade por esse vínculo jurídico; vale dizer, ele, Estado, deveria ser a única pessoa a responder por eventuais inadimplementos de obrigações decorrentes de tal regime de trabalho — e não, jamais, lançá-los sobre a pessoa natural, que não deu causa a isso e recebeu o cartório por concurso de provas e títulos.
Em suma, é no mínimo irrazoável admitir que um particular, ao assumir a delegação cartorária, seja responsabilizado por eventuais créditos da relação estatutária (adicional por tempo de serviço, licença-prêmio indenizada e demais verbas), ao passo que a Fazenda Pública não responda por nenhuma verba decorrente desse vínculo. Infelizmente a tese da irresponsabilidade tem prevalecido nas decisões judiciais.
Regime jurídico: ausência de estabilidade — inaplicabilidade da indenização prevista no §5º do artigo 169 da Constituição
Em outro giro, no estado de São Paulo, referidos escreventes não contratados pelo novo delegatário do cartório extrajudicial, além do reconhecimento da sucessão, têm postulado indenização de um mês de salário por ano de serviço. E o fazem com suposto amparo no §5º do artigo 169 da Constituição.
O pedido é claramente extravagante, considerando que tais escreventes não gozam da estabilidade funcional conferida a servidores públicos nomeados para cargos de provimentos efetivos. Essa premissa inclusive está bem delineada pelo tribunal bandeirante, como se pode notar, por exemplo, de trecho da ratio decidendi na Apelação nº 1036710-53.2016.8.26.0224 da 8ª Câmara de Direito Público:
“(…) Importa pontuar que o regime estatutário ao qual estava vinculada a autora não lhe garante a estabilidade funcional, conferida apenas aos servidores nomeados para o cargo público de provimento efetivo em virtude de concurso de provas e títulos. Notários e escreventes registradores não são servidores públicos”.
Realmente, pelo sistema constitucional só seria admissível tal tipo indenizatório para servidores públicos estáveis, isto é, nomeados para cargos de provimento efetivo e que, por regras de responsabilidade fiscal, foram exonerados do respectivo cargo. Essa não é a situação do escrevente cartorário não celetista. É o que deflui do artigo 169, in verbis:
“Artigo 169 — A despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
(…)
§4º. Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal. § 5º. O servidor que perder o cargo na forma do parágrafo anterior fará jus a indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço”.
O provimento 14/1991 da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo não encontra fundamento constitucional de validade
Também não é incomum no estado de São Paulo que escreventes dispensados reclamem em juízo, a um só tempo, direitos do regime estatutário paulista e do Provimento nº 14/1991, editado pela Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo. Com efeito, referido provimento lhes fixara direitos remuneratórios, inclusive indenização por eventual dispensa de um mês de salário por ano de serviço (ou fração superior a seis meses), nos seguintes termos:
“49. Os escreventes e os auxiliares poderão ser dispensados pelo serventuário sem declaração de motivo, se contarem menos de 5 (cinco) anos de exercício no cargo, assegurada a indenização correspondente a aviso prévio e um mês de salário por ano de serviço ou fração superior a 6 (seis) meses e décimo terceiro salário proporcional.
49.1 Após 5 (cinco) anos a dispensa poderá ser feita, assegurada a mesma indenização, por motivo de sensível diminuição de renda comprovada perante o Juiz Corregedor Permanente”.
Sucede que, a rigor, tal provimento não seria a espécie normativa adequada para regular essa relação de trabalho, já que, tratando-se de ato infralegal, vulneraria o princípio da reserva de lei veiculado pela emenda constitucional (EC nº 19/1998). Referida emenda constitucional exigiu lei específica para fixar ou alterar a remuneração de servidor, o que retiraria eventual fundamento de validade àquele ato normativo para fixar indenização. Confira-se:
“Artigo 37 —
X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do artigo 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.
Em outro dispositivo da Constituição, igualmente existe menção à lei como veículo introdutor de direitos à relação de índole administrativa. Confira-se:
“Artigo 39 —
§3º. Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no artigo 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.
§5º. Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no artigo 37, XI”.
Por sua vez, o artigo 128 da Constituição paulista — e nem poderia ser diferente — assim se encontra redigido:
“Artigo 128 — As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.
Ora, se a relação de trabalho desses escreventes não for regulada pela CLT — e é o caso —, então ela se equipara à relação funcional do servidor com o Estado, que exige lei para fixação de vantagens remuneratórias. Quer dizer, um singelo ato normativo oriundo de órgão sem poder legiferante para inovar o sistema jurídico (corregedoria do tribunal) não poderia instituir direitos remuneratórios ou verbas afins, de modo a obrigar um particular (novo delegatário) a pagar indenização, por exemplo, pela dispensa do preposto cartorário, seja a que título for.
A bem da verdade, o §2º do artigo 48 da Lei nº 8.935/95 andou muito mal quando buscou conferir fundamento de validade a “normas editadas pelo Tribunal de Justiça respectivo” — fundamento de validade que a própria Constituição não conferia à época! Noutro dizer, o §1º do artigo 236 da Constituição, ao anunciar que a lei regulará as atividades dos notários e oficiais de registro, bem como de seus prepostos, não permitia à futura lei ordinária (no caso, a Lei nº 8.935) conferir fundamento de validade a atos infralegais que anteriormente plasmavam “direitos trabalhistas”, pois isso seria esvaziar o postulado da reserva de lei, diminuindo a própria força normativa da Constituição!
Efetivamente, mencionado direito indenizatório (um mês de remuneração/ano de serviço) bem como outras vantagens remuneratórias se são derivados de vínculo funcional, diante da EC nº 19/98 ou do sistema da Lei Maior só poderiam ser desenhados por lei específica da entidade empregadora, jamais por meio de ato infralegal da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça.
Nessa ordem de ideias, a 5ª Câmara de Direito Público do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo sustentou, em abril deste ano, que referido Provimento nº 14 se encontrava revogado diante da Constituição de 1988. Eis a ratio decidendi:
“(…) Contudo, em que pese o disposto no Provimento CGJ nº 14/91, a pretensão da autora não mais subsiste em virtude da superveniência da própria Lei nº 8.935/94, responsável por disciplinar a atividade delegada no artigo 236 da Constituição Federal. As ‘Normas do Pessoal das Serventias Extrajudiciais’, previstas no Provimento CGJ nº 14/91, instituídas no período entre a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a publicação da Lei nº 8.935/94, tinham por pressuposto sistema de serviços notariais e de registro anterior, o qual foi profundamente alterado pelo artigo 236 e seus parágrafos da Constituição Federal e regramento geral fixado pela Lei nº 8.935/94.
Assim, é certo que existe verdadeira revogação das regras previstas no Provimento CGJ nº 14/91 em razão de sua incompatibilidade com o sistema introduzido pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº 8.935/94″ (TJ-SP; Apelação Cível 1005344-67.2019.8.26.0619; relatora: Maria Laura Tavares; órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Foro de Taquaritinga — 3ª Vara; data do julgamento: 26/4/2021; data de registro: 28/4/2021)
Também, há orientação adotada pela 3ª Câmara de Direito Público segundo a qual a Corregedoria, ao editar o Provimento nº 14/91, inovou o sistema jurídico, extrapolou o seu âmbito de atuação, pois não poderia fixar verba indenizatória por rompimento de vínculo entre serventuário e serventia extrajudicial. Confira-se:
“(…) Indenização — Descabimento — Provimento nº 14/91 que, além de superada pela posterior edição da Lei Federal nº 8.935/94 e outras normas internas do Tribunal editadas sobre a matéria, extrapolou o âmbito de atuação da Corregedoria Geral de Justiça, a quem não compete fixar indenização por rompimento de vínculo entre serventuário e serventia extrajudicial — Inteligência do Parecer da Corregedoria no Processo nº 2012/41723, de 02/07/2012 — Precedentes (…)”.
(TJ-SP; Apelação Cível 0010048-11.2014.8.26.0266; relator: Maurício Fiorito; órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Itanhaém – 2ª Vara; data do julgamento: 14/6/2016; data de registro: 14/6/2016)
Não custa lembrar que, em 2012, a Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, no Parecer 188/2012-E — Processo CG nº 2012/00041723, bem destacou que os mencionados escreventes — que não optaram pelo regime da CLT — ficaram submetidos ou às normas do estatuto paulista (Lei Estadual nº 10.261/68) ou às do tribunal, desde que tais normas não afrontem o sistema da CF/1988. Confira-se:
“(…) No âmbito do Estado de São Paulo, os escreventes e os auxiliares de investidura estatutária ou em regime especial que deixaram de optar pela transformação de seu regime jurídico, assim não acedendo à legislação trabalhista, são regidos, nos termos do § 2º do artigo 48 da Lei nºº 8.935/1994, ou pela Lei nºº 10.261/1968 ou pelas normas editadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, naquilo, no entanto, que não afrontar o sistema introduzido pela CF/1988 e, portanto, sem estabilidade”.
Nesse sentido, o Provimento nº 14/1991 afrontaria o sistema constitucional porque, se o regime de trabalho de tais escreventes é no mínimo equivalente ao estatutário, à exceção do direito à estabilidade, a espécie normativa idônea para fixar obrigação indenizatória contra pessoa delegatária do cartório só poderia ser a lei ordinária estadual aprovada pela Assembleia Legislativa.
Enfim, e para concluir, espera-se que outras câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo afastem dos casos concretos o citado Provimento nº 14, haja vista sua flagrante inconstitucionalidade; ou, se assim não for, que o §2º do artigo 48 da Lei dos Cartórios seja interpretado à luz da Constituição para, afastando da hipótese referido ato normativo, aplicar-se unicamente o Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo, naquilo, claro, que não afrontar a Lei Maior.
Alan Brizola é advogado, especialista em Direito Econômico e Negocial pela Escola Paulista da Magistratura, e em Direito Tributário pela PUC/SP.
Fonte: Conjur