Arpen/RS repercute decisão do reconhecimento de um trisal pela Justiça no Rio Grande do Sul

Possibilidade do reconhecimento de união estável poliafetiva ainda não é permitida por via extrajudicial

Em setembro deste ano, a 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo, cidade localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre, reconheceu a união estável poliafetiva de três pessoas, que formam um trisal. A Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS) conversou com o juiz da 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo, o advogado responsável pela defesa do trisal, com a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul (CGJ/RS) e com um dos membros do trisal. Atualmente, a única forma de ter o reconhecimento da união estável poliafetiva é pelo processo judicial, não sendo possível recorrer a via extrajudicial.

O trisal tentou oficializar a relação em cartórios e tabelionatos, mas a solicitação foi negada. Isso se dá pela decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2018, de que cartórios brasileiros não podem registrar uniões poliafetivas, formadas por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) também não reconhecem a união poliamorosa como entidade familiar.

Segundo o juiz-corregedor Felipe Lumertz, os juízes e juízas de Direito do Rio Grande do Sul têm independência funcional e liberdade na aplicação das normas, pois tais garantias compõem a base do Estado Democrático de Direito. “Do ponto de vista administrativo, no entanto, vale destacar que o Conselho Nacional de Justiça, ao julgar o Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, em sessão ocorrida no dia 26.06.2018, determinou às Corregedorias Estaduais que proibissem a lavratura de escrituras públicas declaratórias de união poliafetiva, compreendendo que a sociedade brasileira não incorporou este instituto como forma de constituição de família, ressalvando eventual mudança da situação social no futuro. E, até que haja decisão diversa – do Legislativo, do Conselho Nacional de Justiça ou do Poder Judiciário -, deverá a Corregedoria-Geral da Justiça fiscalizar o cumprimento da determinação advinda deste precedente do CNJ”, destaca o magistrado.

Um dos motivos da busca pelo reconhecimento do trisal foi para resguardar os direitos da terceira pessoa da relação, para que não fosse excluída da divisão de patrimônio, pudesse ser incluída no plano de saúde, na previdência social, entre outros benefícios.

O trisal é formado pelos bancários Denis Ordovás e Letícia Ordovás, e pela pedagoga Keterlin Kaefer. Desde 2006, Denis Ordovás é casado com Letícia Ordová, que já tinha dois filhos de um casamento anterior. Em 2013, o casal começou a se relacionar com Keterlin Kaefer, que gerou o filho do trisal, Yan Kaefer Ordovás.

“As pessoas que querem fazer uma união estável, seja ela homoafetiva e até poliafetiva, querem estar dentro lei, amparados pelo estado. Quanto mais rápido, prático e simples, melhor. Sou muito favorável poder fazer em cartório. No nosso caso, tivemos os custos de honorários do advogado. Muitos teriam dificuldades por questões desses custos”, destaca Denis Ordovás.

O advogado Everson Luis Gross, responsável pela defesa do trisal, entende que a possibilidade do reconhecimento da união estável poliafetiva poder ser feita em cartório seria o caminho mais natural.

O juiz de direito da 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo, Gustavo Borsa Antonello, que expediu à decisão favorável ao reconhecimento, fala que sobre a possibilidade de poder ser feita a união estável poliafetiva em cartório há a decisão do CBJ vedando expressamente os serviços extrajudiciais de lavrarem escrituras públicas de uniões estáveis poliafetiva, que segue vigente e deve ser cumprida. “A despeito dessa decisão, estimo que a lavratura de escritura tratando do tema conferiria certa publicidade e segurança jurídica aos declarantes, sobretudo quanto à prova da existência, ao marco temporal e ao regime de bens eventualmente adotado”, conclui ele.

Atos que antes só poderiam ser realizados na Justiça e que foram autorizados a serem lavrados em cartório demostram a maior celeridade e facilidade desses atos quando feitos diretamente nos serviços notariais e de registro, como inventários, divórcios, cobranças, reconhecimentos de paternidade, mudança de nome e gênero, entre outros procedimentos.

Denis Ordovás explica que a decisão em reconhecer o registro da união estável dos três começou quando descobriram a gravidez de Kaefer. Ele ressalta que já tinham feito algumas pesquisas para ver se esse reconhecimento poderia ser feito sem ser via judicial, e de que tinham a informação de que isso não seria possível, mas com a gravidez e como já queriam ter um filho, já planejavam fazer o pedido judicial do registro multiparental. “Só vejo vantagens, não consigo ver nenhuma desvantagem, pois ele vai ter mais acesso a pessoas cuidando dele, mais acessos a uma rede familiar de proteção, a heranças, a tudo de melhor que legalmente uma criança pode ter tendo duas mães e um pai”, evidencia Denis sobre a conquista do registro multiparental do filho. A multiparentalidade consiste no reconhecimento das diversas configurações de família, além daquelas formadas por vínculos biológicos.

“A união estável está prevista na Constituição da República como um instituto do direito de família que recebe proteção pelo Estado semelhante ao casamento civil. Na literalidade da norma (art. 226, § 3º, da Constituição), define-se a união estável como o vínculo entre homem e mulher como entidade familiar. A aplicação jurídica, ainda mais no âmbito do direito de família, porém, está em constante evolução e sujeita aos avanços sociais”, pontua o juiz-corregedor Felipe Só dos Santos Lumertz.

Lumertz cita a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 e o Tema nº 526, julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e a Resolução nº 175/2013 editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Porém, até o presente momento, a orientação que os Tribunais vêm sinalizando é de preservação de uniões monogâmicas”, frisou o juiz-corregedor.

Denis conta que a chegada do neto mostrou a importância dos primeiros meses entre mãe e filho, e que se não buscassem o reconhecimento, a companheira Letícia não teria na esfera jurídica nenhum direito de usufruir da licença-maternidade, poder criar o vínculo com o filho nesses primeiros meses de vida, e ser uma rede de apoio e cuidá-lo. “Acabamos fazendo consultas com alguns advogados que não nos encorajaram e entediam que precisávamos esperar o nascimento do Yan para entrar com o pedido judicial, e o escritório de advocacia Gross & Klein entendeu ser viável já fazer o pedido judicial durante a gravidez, e já fazer o reconhecimento da união estável, pois efetivamente estamos vivendo casados há 10 anos”, enfatiza Denis.

“Ingressemos com a ação e acabou dando tudo certo. O Denis e a Letícia tiveram que se divorciar porque eram casados até então e a lei brasileira veda o casamento entre mais de duas pessoas, é considerado poligamia, e há uma vedação, então a gente também teve que complementar com um pedido de divórcio para posterior reconhecimento da união estável, e deu tudo certo, principalmente depois do depoimento das testemunhas e do depoimento pessoal deles que foi de muito amor, de carinho e de afeto, não tinha outro caminho a não ser o reconhecimento dessa relação e da filiação para os três”, conclui o advogado.

O reconhecimento da união estável poliafetiva entre os três permitiu que a criança tenha o registro multiparental, ou seja, tenha os nomes das duas mães e do pai, além de dar o direito à licença-maternidade e paternidade para os três. Denis reforça que o processo precisou começar com trâmites de um divórcio e levou cerca de dois meses. “Esperamos que o nosso caso sirva de exemplo e de estimulo para outras famílias buscarem esse direito em que só vejo vantagens e que não consigo ver nenhuma situação ruim em que um filho seja registrado com três pessoas”.

“Embora com formato diverso das famílias ditas tradicionais, os sentimentos que envolvem a relação dos integrantes do trisal – a que se soma agora a chegada do recém-nascido -, não discrepam em nada daquilo que se evidencia e se espera da vida em família”, ressalta o juiz Gustavo Borsa Antonello.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/RS