Professor Vitor Frederico Kümpel fala sobre a mutabilidade do nome no registro civil em entrevista à Arpen/RS
Em entrevista à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS), o 1º Livre Docente em Direito Notarial e Registral pela Universidade de São Paulo, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, professor do curso VFK Educação e autor da Coleção Tratado Notarial e Registral, Vitor Frederico Kümpel fala sobre a mutabilidade do nome no registro civil das Pessoas Naturais e a prática de atos eletrônicos pelos cartórios.
“A adaptação do registro civil ao paradigma eletrônico que perpassa todas as instâncias sociais é, mais que positiva, verdadeiramente imprescindível. A evolução tecnológica molda as interações sociais e precisa ser assimilada pelo universo jurídico, especialmente pelos serviços registrais, que lidam direta e diuturnamente com a população, assumindo o compromisso de prestar serviços com eficiência, segurança, publicidade e eficácia – sendo a tecnologia uma inegável aliada para atingir tais objetivos”, destaca Vitor.
Confira a íntegra da entrevista:
Arpen/RS – Como avalia o Registro Civil das Pessoas Naturais como instrumento de demonstração do formato familiar?
Vitor Frederico Kümpel – Na medida em que o Registro Civil das Pessoas Naturais permite a formalização das diversas configurações familiares, assume naturalmente um importante papel de instrumento de demonstração do formato familiar, materializando as diversas uniões familiares no âmbito administrativo. Com a Constituição Federal de 1988, não restaram dúvidas de que o conceito de família perdeu a estrita vinculação que tinha com o casamento, sendo certo que a existência de outras uniões, como o caso da união estável, ou de relação de um dos pais com os descendentes (família monoparental) passaram a receber igual proteção estatal. Essa mudança de paradigma certamente refletiu no papel do registrador civil, que fica mais complexo à medida que as relações familiares se diversificam. Exemplo emblemático é o da união estável, cuja formalização foi gradativamente concentrada no âmbito do registro civil, dispensando até mesmo o reconhecimento por parte do juiz ou a lavratura de escritura pública por tabelião. De fato, com o advento da Lei nº 14.382/2022, que incluiu o art. 94-A, caput, à Lei registral, e em conjunto com o art. 1º, § 3º, do Provimento 37/2014, incluído pelo Provimento 141/2023 do CNJ, o registro da união estável ou a averbação da sua dissolução, no Livro E, passou a poder ser instruído inclusive pelos chamados termos declaratórios, formalizados perante o próprio oficial de registro civil das pessoas naturais. Vale dizer, a lei concentrou no registrador civil tanto a atribuição de confeccionar o título (tradicionalmente notarial) quanto a de realizar o registro (modo). Aliás, o papel do registrador civil assume uma importância ainda maior ao se considerar o novo procedimento de certificação eletrônica da união estável, que permite ao registrador averiguar e fazer constar no termo declaratório e no respectivo registro a data real de início da união (o que sequer podia ser feito por escritura pública, o que evidencia o status privilegiado dado ao papel do registrador civil nessa nova sistemática).
Arpen/RS – Como a mutabilidade do nome repercute no registro civil?
Vitor Frederico Kümpel – A Lei nº 14.382/2022 alterou significativamente a questão da mudança do prenome na Lei dos Registros Públicos. Nesse sentido, a nova redação do art. 56 da Lei nº 6.015/1973 passou a permitir a alteração imotivada do prenome pela pessoa registrada, independentemente de autorização judicial, após ter atingido a maioridade civil, uma única vez. Ou seja, a pessoa passa a ser livre para decidir o seu nome, com base no princípio da autopercepção, independente de prazo e de alteração de gênero. Para sopesar a liberdade de alteração do próprio nome, de um lado, e a segurança jurídica dos registros públicos, de outro, o nome anterior sempre deve constar na certidão atual, assim como a numeração dos documentos, para que seja mantida a identidade da pessoa, não sendo submetido a qualquer regra de sigilo. Da mesma forma que o prenome, o sobrenome pode ser alterado diretamente perante o registro civil, desde que mantenha a unidade familiar, visando muitas vezes buscar sobrenome de outro ascendente a fim de dignificá-lo. Assim, hoje, mais do que nunca, é possível afirmar que a regra se tornou a possibilidade de mudança, seja do prenome ou do sobrenome, ao passo que a imutabilidade virou a exceção. Essa mudança de paradigma em relação à mutabilidade do nome se deu em compasso com a disseminação do CPF, cujo número serve para identificar a pessoa natural, tendo assumido maior importância nessa identificação do que o próprio nome. Não obstante, a regulamentação das condições e requisitos para a alteração do nome evidencia que se trata de uma mutabilidade controlada, balizada pela necessária proteção de terceiros e pelo interesse social, sendo essencial o papel do registrador civil em efetuar esse controle, garantindo que a mudança de nome e sobrenome atendam aos requisitos legais e se revistam da necessária publicidade.
Arpen/RS – Como avalia a importância dos cartórios de registro civil no processo de mudança de registro de prenome e gênero?
Vitor Frederico Kümpel – A jurisprudência, durante muito tempo, negou a alteração de nome e gênero à pessoa transgênero. Contudo, houve nítida evolução nesse pensamento, de forma que, atualmente, a retificação do nome pode ser feita inclusive em âmbito extrajudicial. O primeiro passo nessa evolução foi dado pela jurisprudência, sendo emblemático o julgamento da ADI n. 4.275/DF, no qual o STF deu interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 58 da LRP, reconhecendo o direito da pessoa transgênero que desejar, independentemente de cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, à substituição de prenome e gênero diretamente no ofício do RCPN. Consolidando essa admissão, o CNJ regulamentou o procedimento para a realização dessa averbação diretamente no ofício do RCPN onde o assento foi lavrado, no Provimento nº 73/2018. Essa mudança se alinha perfeitamente à atual primazia da autopercepção em detrimento da engessada imutabilidade do nome, bem como à noção de que o gênero e o nome são direitos da personalidade, e sendo assim devem poder ser alterados independentemente do sexo biológico, bastando que o titular de direitos não se conforme com o nome adotado. A realidade ou verdade passa a ser um estado de espírito sendo a exteriorização consciente do titular motivo mais do que razoável para a alteração do prenome, independentemente de exposição ao ridículo e qualquer outro subterfúgio que se busque para referida tutela. E, mais uma vez, os cartórios de registro civil aparecem como importante instrumento para a efetivar esse direito de forma célere, segura e eficiente.
Arpen/RS – Em relação ao avanço da tecnologia, como vê a prática de atos eletrônicos pelos cartórios de registro civil?
Vitor Frederico Kümpel – A adaptação do registro civil ao paradigma eletrônico que perpassa todas as instâncias sociais é, mais que positiva, verdadeiramente imprescindível. A evolução tecnológica molda as interações sociais e precisa ser assimilada pelo universo jurídico, especialmente pelos serviços registrais, que lidam direta e diuturnamente com a população, assumindo o compromisso de prestar serviços com eficiência, segurança, publicidade e eficácia – sendo a tecnologia uma inegável aliada para atingir tais objetivos. A Central de Registro Civil (CRC) foi um grande marco na evolução tecnológica do registro civil, mas um novo passo foi agora dado com a edição da Lei nº 14.382/2022, que além de todas as demais novidades mencionadas, idealizou um novo sistema eletrônico, o SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos). Embora ainda não tenha sido implementado, os principais aspectos desse sistema já foram regulamentados pelo CNJ, por meio do Provimento nº 139/2023. O que se nota é que esse novo sistema eletrônico abre portas para uma base de dados integrada pelas três sub-bases registrais, isto é, o Registro de Imóveis, o RCPJ/RTD e o RCPN, o que permite que, num futuro próximo, tais bases possam se interconectar. Essa possibilidade nos permite até mesmo cogitar que, um dia, o Registro Civil passe a gerar publicidade erga omnes (assim como o registro de imóveis), o que passaria a ser possível diante da existência de uma base nacional de consulta.
Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/RS