Vice-presidente do IBDFAM, Maria Berenice Dias falou sobre o gênero neutro no registro civil
Em entrevista à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS), a presidente Nacional da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família e presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM, Maria Berenice Dias, falou sobre o gênero neutro no registro civil.
“A ausência de expressa autorização legal ou administrativa, não inibe a alteração extrajudicial. Basta uma interpretação sistemática da legislação que veio prestigiar a dignidade da pessoa. E esta responsabilidade pode – e deve- ser assumida pelos registradores civis, que precisam atentar aos princípios constitucionais. Afinal, são importantes agentes garantidores dos direitos de cidadania”, destaca Maria.
Confira a íntegra da entrevista:
Arpen/RS – Como avalia o Registro Civil das Pessoas Naturais como instrumento de demonstração do formato familiar?
Maria Berenice Dias – Certamente dos serviços extrajudiciais dotados de fé pública, o mais capilarizado seja o registro civil das pessoas naturais. Sob a responsabilidade de profissionais qualificados, desempenham importante papel na garantia e segurança dos direitos mais fundamentais das pessoas. Em tais ofícios são oficializados todos os acontecimentos significativos da vida de alguém, desde o seu nascimento até sua morte, bem como a constituição e o rompimento de seus laços familiares.
Daí o enorme significado de tais serviços, que assegura fácil acessibilidade e rapidez de respostas.
Arpen/RS – Quais cuidados devem ser adotados pelo registrador civil para estar alinhado com as normativas e decisões judiciais sobre o tema o registro civil do gênero neutro?
Maria Berenice Dias – Existem realidades que não podem ser ignoradas. Entre elas a existência de pessoas intersexo, que eram chamadas de hermafroditas. São aqueles cujos órgãos genitais externos não permitem a identificação de seu sexo. Não permitir que tal característica conste no registro civil de quem não tem um gênero definido, é condenar à invisibilidade e à exclusão esta parcela da população. De outro lado, não há como impor a tais crianças que, para serem registradas, se submetam a cirurgias de adequação sexual, como equivocadamente autoriza do Conselho Federal de Medicina (CFM – Resolução 1.664/2003). Até porque, na adolescência ou na fase adulta a pessoa pode não se sentir como pertencente ao sexo que aleatoriamente lhe foi imposto.
Arpen/RS – Qual a importância do papel do registro civil no processo de identificação do gênero neutro?
Maria Berenice Dias – Sensível à realidade das pessoas intersexo, o Manual de Instruções do Ministério da Saúde autorizou que conste na Declaração de Nascido Vivo (DNV), a indicação do sexo como “ignorado”.
E, como não existia tal opção no formulário do registro de nascimento, simplesmente não era autorizado o registro, havendo a necessidade de os pais se socorrerem da justiça. Em face disso, atendendo a uma solicitação do IBDFAM, o Conselho Nacional de Justiça autorizou o registro como sexo ignorado quando assim constar na DNV (CNJ – Provimento 122/2021).
Arpen/RS – Sobre coleta e tratamento dos dados pessoais dos cidadãos, como avalia o papel do registro civil nesse processo?
Maria Berenice Dias – Este é um tema muito sensível, uma vez que o filho que nasceu não corresponde ao sonho dos pais, de terem um filho ou uma filha. Por isso eles merecem do registrador um atendimento humanizado. Não vejo qualquer justificativa para que seja sugerida a adoção de um nome que atenda aos dois sexos. Afinal, a identificação do sexo pode ser feita a qualquer tempo. E, em face da recente alteração da Lei dos Registros Públicos, possível a modificação do prenome.
Arpen/RS – Como avalia a importância dos cartórios de registro civil nesse processo de mudança de registro de prenome e gênero?
Maria Berenice Dias – A atualização – ainda que parcial – da Lei dos Registros Públicos (Lei 14.382/2022), priorizou o direito fundamental à identidade, sem comprometer a segurança das relações jurídicas. Agora qualquer pessoa, sem precisar apresentar qualquer justificativa, a partir dos 18 anos de idade, pode alterar o seu prenome, bem como a ordem, a inclusão ou a exclusão dos nomes de família. O avanço foi salutar. Garante uma resposta mais rápida, além de desafogar o Poder Judiciário, dispensando a intervenção judicial de demandas que não envolvem qualquer controvérsia a merecer uma decisão judicial. Outra importância significativa. Cabe ao registrador fazer todas as comunicações os órgãos oficiais de identificação, o que dispensa a necessidade de apresentação de certidões negativas de qualquer ordem. Inclusive, em face desta mudança, o IBDFAM solicitou a retificação do procedimento que regula o registro dos transgêneros (Provimento 73/2018), para dispensar desnecessária e exagerada apresentação de documentos e certidões.
Arpen/RS – Qual a importância de as pessoas não-binárias de não ter mais a necessidade de buscar a via judicial?
Maria Berenice Dias – São chamados de não-binárias as pessoas que simplesmente não se sentem como pertencentes nem ao sexo masculino e nem ao feminino. Estas pessoas não podem ser obrigadas a ostentar em sua identificação registral que são de um ou de outro gênero, porque, simplesmente, não são. Os pedidos de retificação eram autorizados pela justiça. Mas, diante do panorama atual, a alteração pode ser feita diretamente no cartório do registro civil do local de sua residência. A ausência de expressa autorização legal ou administrativa não inibe a alteração extrajudicial. Basta uma interpretação sistemática da legislação que veio prestigiar a dignidade da pessoa. E esta responsabilidade pode – e deve – ser assumida pelos registradores civis, que precisam atentar aos princípios constitucionais. Afinal, são importantes agentes garantidores dos direitos de cidadania.
Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/RS